Ao contrário do dançarino, que jamais consegue suprimir toda a afetação de seu gesto (“a afetação aparece, como os senhores sabem, a partir do momento em que alma [vis motrix] encontra-se noutro ponto que não o centro da gravidade do movimento”), a marionete desaparece em sua própria ação: não é ela que executa a figura, mas a figura que se dá a ver nela, despojada de qualquer interioridade.
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As representações do corpo preenchem o imaginário dos homens desde as esculturas e pinturas de antes da era corrente. De forma muito geral, pode-se dizer que se tratam de representações de tipo figurativo, ainda que atribuir a um intervalo tão longo de tempo da história das linguagens visuais um única caraterística, mesmo que abrangente, não deixa de ser arriscado pelo potencial de exceções possivelmente existentes. Que seja, apenas como recurso operacional para propor que algo começa a mudar no século XIV, como as análises que Warburg faz de Botticelli permitem perceber.
De fato, seguindo Alain-Michaud, é preciso considerar que o próprio Warburg muda a forma de olhar para este conjunto de obras. Em suas análises, a “figura não surge como algo estável, mas parece nascer de um jogo de forças contraditórias que se encontram no limite externo do envoltório do corpo, para retomar os termos de Aristóteles, e não na automanifestação de sua presença imóvel” (p. 77). Este recorte resulta de um abordagem que não buscava “pôr em destaque as similitudes entre as obras do Renascimento e seus modelos, mas, ao contrário, de compreender como a singular experiência moderna de pintores e poetas florentinos viera a se exprimir, tomando emprestadas as vidas da identificação com o passado” (p. 75).
Em O nascimento de Vênus, a representação do vento acontece de forma indexical: elementos visuais como os cabelos em movimento e o vestido grudado no corpo e esvoaçantes remetem ao elemento invisível, que surge no quadro possivelmente num diálogo com a literatura de Homero
Um primeiro aspecto a ser levado em conta é o caráter intersemiótico com que ele aborda as pinturas de Botticelli. “A propósito de O Nascimento de Venus, ele estudou o vínculo que ligava o quadro de Botticelli à descrição feita por Ângelo Poliziano, em La Giostra [A justa], de uma seqüência de esculturas imaginárias que representariam a deusa saindo das águas; a descrição se inspirava, por sua vez, num hino homérico /…/ Poliziano adapta a um modelo literário fornecido pela poesia épica da Antiguidade a descrição dos movimentos rápidos das figuras tiradas da observação direta. A influência recíproca entre a intuição do corpo, imediatamente oferecido à sensibilidade do poeta, e as reminiscências das figuras da fábula produz um compromisso entre figura mitológica e personagem real, do qual Warburg encontra uma expressão visual em O nascimento de vênus e A Primavera, de Botticelli” (p. 75-6).
No mesmo texto, Alain-Michaud explica que quando “Warburg investiga as proposições em que se manifesta a personalidade de Poliziano em sua retomada do poema de Homero, ele observa que todas modificam a economia das figuras em repouso, entregando-as aos efeitos de uma força externa e sublinhando a realidade delas: quando Homero descreve Zéfiro carregando a deusa “sobre as ondas do mar tempestuoso, na macia espuma”, Poliziano comenta: “O sopro dos ventos era verdadeiro…” /…/ “O vento brinca nas túnicas brancas e faz ondular os cabelos espalhados e despenteados…”.
O próprio Warburg analisa o quadro de Botticelli destacando os movimento que o constituem: “Ela está na margem do rio (com o perfil, nitidamente desenhado, virado para a esquerda) e apresenta a Vênus, que se aproxima, o manto inflado pelo vento; segura a borda superior na ponta do braço direito estendido e a borda inferior com a mão esquerda. /…/ Sua túnica externa adere muito estreitamente ao corpo e destaca com precisão o contorno das pernas; partindo da dobra do joelho esquerdo, um drapeado vai para a direita, formando um arco achatado que se desfaz para baixo em pregas desdobradas em leque; as mangas justas, de tecido macio. A massa dos cabelos flutua livremente para trás, em longas ondulações que saem das têmporas; uma parte menor forma uma trança grossa, que termina numa mecha de cabelo solto.”
Em A Primavera, o vento surge através de representações indiretas, pelo uso de elementos cujo caráter simbólico remete à mitologia e, mais uma vez, à literatura.
Outro aspecto que interessa a Warburg, ainda segundo Alain-Michaud, é a teia de relações que os quadros de Botticelli estabelecem, tanto com a tradição pictórica quanto com os tipos de rostos existentes na época em que foram pintados (construindo uma espécie de iconografia que mistura elementos mitológicos com personagens cotidianas). Reside nisto, a modernidade destas pinturas: mais que imitações de ume estilo antigo, elas propõe releituras de temas clássicos, no contexto em que são criadas.
Na Análise de A Primavera, entram em jogo o recurso a arquétipos e personagens, como fica claro no trecho abaixo:
“quando vemos como, em contato com a brisa primaveril, Clóris faz nascerem flores de seu hálito, /…/ como suas mão deslizam atrás das flores que enfeitam a roupa da nova Flora e como as duas figuras, levadas por seu ímpeto, convergem a ponto de parecem chocar-se, não há como duvidar de que Boticcelli representou a metamorfose como uma mudança da natureza” (p. 82).
Alain-Michaud relaciona a interpretação warburgiana com a leitura proposta por Edgar Wind:
“Em A Primavera, Wind procura incialmente decifrar a significação do grupo que ocupa a direita do quadro. Clóris, ninfa das pradarias, foge de Zéfiro, personificação do vento primaveril. No instante em que é capturada, brotam flores da sua boca: ela se transmuda em Flora, a mensageira da primavera” (p. 81). Um aspecto a ser destacado deste tipo de corpo simbólico é sua capacidade de mutação: o movimento, que no corpo indexical do nascimento de vênus, aparece como indício do vento, e insere um elemento invisível no campo da representação visual, aqui surge como transformação, como mudança de estado de um corpo submetido aos efeitos do tempo.
Um aspecto desta representação indireta do vento que Warburg aponta é o reconhecimento de um mundo extracampo que interfere no que a imagem recortada pelas quatro linhas que a emolduram representa. Este tipo de abordagem é bastante importante para pensar as relações entre Warburg e a análise audiovisual, na medida em que conceitos como o de extracampo só vão surgir de forma mais explícita para pensar o cinema e a montagem entre imagem e som (conforme melhor desenvolvido em Warburg: crítico de cinema avant la lettre).
Talvez abordagens do tipo aponte para leituras que situam o mundo visual nos domínios da apresentação. Um exemplo aparece no Deleuze que Lógica da Sensação, quando afirma que de “um outro ponto-de-vista, a questão da separação das artes, de sua autonomia respectiva, de sua hierarquia eventual, perde toda a importância. Pois há uma comunidade das artes, um problema comum. Em arte, tanto em pintura quanto em música, não se trata de produzir ou inventar formas mas de captar forças. É por isso que nenhuma arte é figurativa. A célebre fórmula de Klee, “não apresentar o visível, mas tornar visível”, não significa outra coisa. A tarefa da pintura é definida como a tentativa de tornar visíveis forças que não são visíveis. Da mesma forma, a música se esforça sonoras forças que não são sonoras.” (p. 62)
Mais adiante, Deleuze afirma que, “na história da pintura, as figuras de Bacon, são uma das respostas mais maravilhosas à questão: como tornar visíveis forças invisíveis? Esta é mesmo a função primordial as figuras. Pode-se notar, a esse respeito, que Bacon permanece relativamente indiferente ao problema dos efeitos. Não que os despreze, mas pode pensar que, em toda a história da pintura, pintores que ele admira já os dominaram suficientemente: sobretudo o problema do movimento, “apresentar” o movimento” (p. 63).
Cézanne e a representação do movimento: no final do século XIX, o uso de cores e formas menos nítidas deslocam a sugestão de movimento identificada por Warburg em Botticelli, para um tipo de visualidade mais sensório.
Diante desta tradição de mostrar o movimento de forma indireta ou sugerida, Bacon se engaja num tipo outro de mostragem do movimento, que parece unir a sensorialidade de um Cézanne à decupagem do tempo em formas espacializadas de um Marrey ou Duchamp. Para Deleuze, esta abordagem gera efeitos “como se a forças invisíveis esbofeteassem a cabeça sob os mais diferentes ângulos. E aqui as partes limpadas ou varridas do rosto ganham um novo sentido, pois marcam a própria zona onde a força incide” (p. 63).
“Tornar visíveis forças que não são visíveis”: “isso é verdadeiro para todas as séries de cabeças e auto-retratos, é até a razão pela qual Bacon fez tais séries: a agitação extraordinária destas cabeças não vem de um movimento que a série deveria recompor, mas antes de forças de pressão, dilatação, contração, achatamento, estiramento que se exercem sobre a cabeça imóvel” (p. 64)
Deleuze considera o grito um caso especial do repertório de Bacon: “Porque Bacon vê no grito um dos mais elevados objetos da pintura? ‘Pintar o grito…’: não se trata de dar cores a um som particularmente intenso. A música encontra-se diante da mesma tarefa, que não é a de tornar o grito harmonioso, mas de colocar o grito sonoro em relação com as forças que o suscitam. Do mesmo modo a pintura colocará o grito visível, a boca que grita, em relação com as forças”. (p. 66).
Estudo a partir do retrato do papa Inocêncio X, de Velásquez
Estudo para enfermeira no filme Encouraçado Potemkim
Assim com o tema do extracampo é sugerido em Warburg, a representação dos sentidos presente em Bacon também dialoga com sintaxes da montagem audiovisual, para além de relações explícitas como a proposta pelo próprio pintor ao recriar uma das cenas do famoso filme de Eisenstein.
Corpos sensórios: desconforto, estranhamento, aspereza e deformação no remix single channel de Granular Syntesis / Modell 5
Mundos impossíveis: um olhar literalmente negro sobre o mundo, em Iridium de Mihai Grecu