literatura, memória e o presente que nos arrasta

Já faz mais de um mês que o correio trouxe à soleira da porta o ensaio Literatura, memória e o presente que nos arrasta, de Julio Mendonça, em edição cuidadosa da Galileu Edições. A vontade de ler imediatamente foi atropelada pelos fatos da vida, nestes tempos em que a rotina parece fugir ao controle de formas que nem Jonathan Crary poderia ter suposto, em 24/7 – Capitalismo tardio e o fim do sono. Não deixa de ser irônico, pois a contracapa do livro aborda justamente este tema: “Estamos, cada vez mais, entregues ao arrastão da “economia da atenção”, que nos submete à lógica da era da informação inútil e nos submerge num presente contínuo de ansiedades insaciáveis”, atualizando o problema da atenção dispersa que vem surgindo desde o final do século 19, conforme formulado pelo próprio Crary em outro de seus livros, Suspensão da Percepção.

Por isso, antes de entrar nos temas do livro, destrinchados com minúcia e cuidado raros, vale dizer algumas palavras sobre o próprio projeto editorial e forma de distribuição. Apesar da tiragem não estar indicada, o aspecto do volume sugere poucos exemplares impressos em tecnologia híbrida entre o artesanal e o industrial. Ao modo da literatura experimental, o livro foi distribuído por correio, deslocando para a prosa as experiência da arte postal e da poesia visual — que inventaram esta forma analógica de rede, em que o download depende da quantidade de selos ao invés da largura de banda da conexão.

No artigo Irreprodutível, a crítica inglesa Erika Balsom discute a potência das experiências na arte recente que fogem aos domínios da repetição em série, como forma de subverter a lógica dominante na cultura contemporânea. É o mesmo gesto de um livro como este de Mendonça, que nos põe na direção contrária à da velocidade estonteante que o mundo atual impõe à vida. Um texto que não se deixa arrastar pelo presente que nos empurra. Antes mesmo que o leitor vire a primeira página para iniciar a leitura, já há muito dito nestas decisões que recuperam modos de trabalhar de uma época em que estar em rede era parte de uma utopia, e circular conteúdos por uma comunidade dependia mais do desejo obstinado de um grupo que dá facilidade dos cliques em certas interfaces.

Como na literatura de invenção, que de Oswald de Andrade a Augusto de Campos, soube ser breve e ágil (ensinando que a velocidade pode ser potente, quando opera os campos da síntese e da densidade), o texto de Mendonça diz muito mais do que parece caber na quantidade de linhas escritas. Um texto abrangente, tanto pelo arco de tempo que propõe discutir, quanto pela diversidade de autores que evoca, transitando com precisão e de forma ampla entre a literatura e o pensamento conceitual. De Havelock a Joyce, percorre-se os modos de mediar a escrita conforme eles mudam ao longo de anos e dispositivos.

Nestes tempos de citações descontextualizadas e artigos que parecem resultado da navegação desconexa por motores de busca desencontrados, é um presente poder ler um texto em que cada citação se concatena com o pensamento anterior e media um caminho para o próximo, mesmo que o fluxo da ideias não seja óbvio ou esperado.

O texto estrutura-se a partir de um tratamento em certa medida cronológico do problema da memória na literatura, mas o arco do tempo não surge como uma prisão linear de ideias que evoluem, e sim como um encadeamento de modos de mediar o texto e pensar sobre as formas como o que é dito em ato efêmero pode ser preservado em poemas, livros e mídias. Um percurso contado ao modo de pensadores como LeGoff, um dos autores que surgem no texto, e que investiram na possibilidade de uma história menos marcada por grandes fatos e longos arcos de acontecimentos.

Um dos pontos-de-partida são as culturas orais, época em que o corpo era o principal espaço da memória. O escopo do texto era, então, restrito às capacidades do próprio corpo. Texto restrito ao comum dos que vivem próximos, e literatura como testemunho de uma experiência compartilhada no que há de mais imediato, que é a convivência e a transmissão entre gerações. Esta circulação, que transita entre Platão e Sócrates, com desvios para o mundo já escrito de Steiner e Borges, vai levar a um dos pontos importantes do texto, uma definição de literatura como exercício de imaginação:

“Se na história a memória coletiva é permanentemente problematizada, na literatura ela é livremente recriada; no espaço literário, memória, esquecimento, destruição e recriação podem contribuir com diferentes pesos – nele, rememoração e projeção convivem e ampliam o alcance da percepção humana”.

O tema da memória permeia o livro e serve como fio condutor, mas o texto também aborda questões urgentes, como a importância da abertura do circuito literário para as minorias (e o decorrente risco de certo exagero na responsabilidade social). Em sintonia com Ezra Pound e João Cabral de Melo Neto, Mendonça lembra que a literatura é um ato de exercitar o inútil e o inesperado. Muitas vezes, esse desacordo com os pragmatismos da vida é o que a torna capaz de dobrar as realidades e ideologias estabelecidas, e não os discursos explicitamente políticos.

Esta aliança com escritores interessados na pesquisa com a forma faz com que Mendonça toque em um dos dilemas curiosos do pensamento contemporâneo, que é um olhar crítico para a pesquisa formal que leva todavia ao risco do deslize por um conteúdo que acaba preso na própria demanda por transparência. Afinal, se não há separação entre forma e conteúdo, a desconfiança a respeito da pesquisa formal tem algo de ingenuidade em relação ao fato de que toda forma diz algo, e formas simples podem correr o risco de dizer algo simplista. Mas o texto não diz exatamente isso, e diz algo sobre isso de forma um pouco mais complexa do que pude formular aqui:

“Se algumas das vanguardas artísticas e poéticas do início do século XX – embasadas, principalmente, nas inovações formais – propuseram esquecer o passado (a atitude iconoclasta dos futuristas, a radicalidade da última prosa de Joyce e a “nova beleza” de Mondrian, por exemplo, que propunha superar a reprodução da realidade) -, vivemos o paradoxo de glamourizar essas vanguardas (que, claro, também já fazem parte do passado) e desacreditar qualquer ousadia formal artística/poética, hoje, como incapaz de futuro. Estamos, assim, também neste campo (porque isto se dá em paralelo ao descrédito com que é tratada qualquer proposta de transformação social e política ousada), condenando-nos ao conformismo como o presente.

Outra questão premente no livro é o desafio de lidar com as tecnologias emergentes, e a velocidade que elas impõe à vida. A literatura de boa parte do século passado foi escrita sob o signo da inovação dos dispositivos, e investida de um sonho utópico de transformação das coisas pela reinvenção das linguagens, inclusive em sua dimensão técnica. Mas a direção que as coisas seguiram, conforme os aparelhos digitais foram sendo disseminados pelas culturas e sociedades, foi diferente. Chegamos a este presente que nos arrasta, na bela formulação do título do livro.

Lembrando o engenhoso título do livro de Bion, Memória do Futuro, encontra-se uma chave para entrar nas reflexões que Mendonça propõe, neste texto em que a memória é um ponto de partida para pensar o presente, e uma companheira que permite evitar o esvaziamento que a velocidade dos tempos recentes impõe. Um texto em que o passado não é motivo de nostalgia, mas repertório para encontrar modos de posicionamento crítico diante do presente.

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