M3x3 e Non Plus Ultra: artes do vídeo no Brasil entre os anos 1970 e 1980

Os princípios da videoarte no Brasil permitem refletir sobre os modos como os debates sobre a timidez formal da arte no brasil projetam-se em direção ao contemporâneo, em que pese o fato de que a diversidade de abordagens que começa a surgir torna menos possível explicar a produção existente a partir de lógicas que se propõe a abranger o conjunto do que os artistas fazem. Este modo de olhar para as experiências do modernismo brasileiro e seus desdobramentos, proposta por Rodrigo Naves, em A Forma Difícil, projeta-se em duas direções, permitindo explicar o que veio antes e o que veio depois dos períodos ao que autor se dedica.

Este desdobramento meio borgeano, que desafia o entendimento óbvio da passagem do tempo e os jogos de influência entre os artistas, também leva a um paradoxo, na medida em que as artes do vídeo, no Brasil, desdobram o projeto construtivo da arte e da poesia concreta, cujo rigor formal representa uma complexificação da cultura brasileira, que sugere possíveis ajustes na leitura proposta por Naves. Todavia, veremos adiante como obras marcantes das diferentes gerações do vídeo no Brasil, como M3x3, de Analívia Cordeiro, e Non Plus Ultra, da TVDO, ainda flertam com aspectos desta timidez formal (no caso da primeira) ou fazem convergir modos aparentemente divergentes de reler a tradição antropofágica, um dos momentos centrais da leitura de Naves (pelo elo duplo com o Oswald de Andrade dos poetas concretas e o Oswald de Andrade de José Celso Martinez Correia, como Tadeu Jungle formulou numa fala sobre o documentário a respeito de Zé Celso que dirigiu).

Este percursos que faz certos procedimentos das artes do vídeo no Brasil retornar ao modernismo mostra que não há sentido em formular a história desta linguagem pelo debate em torno dos artistas inaugurais. Se houve um momento em que era importante afirmar o teor de ruptura da videoarte, algo que estes discursos sobre obras inaugurais reforça, hoje fica claro que o projeto dos artistas do vídeo também tem elos com passados mais remotos da arte brasileira (e da arte em geral).

M3x3, de Analívia Cordeiro, por exemplo, tensiona um campo de experiências inaugurado que existe pelo menos desde o Balé Triádico, de Oskar Schlemmer. Isto fica evidente quando se leva em conta tanto o corpo “vestido” por geometrias, quanto a marcação geométrica do espaço como um dispositivo de coreografia que, em que pesem certas diferenças especialmente relativas ao momento histórico, aparecem em ambas as obras.

Uma leitura mais direta da obra permite discutir como a videoarte internacional surgiu sob o signo da ruptura, e a videoarte no Brasil surgiu em diálogo com linguagens existentes — o que pode ser entendido como um problema análogo ao problema da formalização tímida que Rodrigo Naves identifica no modernismo brasileiro. Em resumo, artistas como Paik ou Vostell forjaram a videoarte internacional com um engajamento intenso na materialidade da linguagem eletrônica, levando ao limite os usos da câmera, e especialmente da ilha de edição, ao passo que Cordeiro trabalhou de um modo em que o corpo diante da câmera oferece mais sentido que a linguagem eletrônica propriamente dita.

Disso se pode pensar uma certa continuidade do problema apontado por Naves, como decorrente da tensão entre arcaico e moderno que marcou os primeiros passos das experiências modernistas no país — algo que Nicolau Sevcenko (no Orfeu Extático da Metrópole) extrapola para um pensamento mais geral sobre esta tensão entre antigo e novo, que marcaria o processo de urbanização de São Paulo, e que não é descabido considerar como um atravessamento mais amplo de certo contraditório que perpassa a história do país. Isto fica muito claro quando se observa o modo como os corpos dançando em Global Groove se desfazem em feedbacks e inscrustações que desestabilizam o teor figurativo da imagem gravada em favor de uma plasticidade radical, em contraste com os corpos mostrados de modo mais próximo ao registro do movimento no vídeo de Cordeiro, em que as opções de filmagem e edição, por mais que tenham certo peso, não chegam a desmontar a lógica do acontecimento que se desenrola diante da câmera.

Isto não resulta em um ponto-de-vista qualitativo, em que este engajamento com a materialidade viesse a ser entendido como uma característica a ser valorizada, mas sim como uma pista para entender o contexto brasileiro a partir dos sinais que a obra de Cordeiro emitem. Além da questão formal, foi discutido o vínculo com a televisão e o modo como a artista denomina o vídeo de “dança” e organiza os créditos de forma parecida aos de um programa de TV (o que sugere um modo mais “industrial” de trabalhar, em contraste com o “artesenato eletrônico” de artistas como Paik e Vostell, e explicita a dependência que os artistas brasileiros da época tinham de instituições que viessem a viabilizar suas obras, algo que aparece de forma muita clara na bibliografia especializada). Em resumo, foi uma discussão que procurou desviar do debate sobre qual o marco inicial da video arte no Brasil (algo que dos pontos-de-vista aqui apontados tem menos interesse) e inserir o surgimento de obras em vídeo dentro de um escopo mais amplo das artes visuais no país.

Talvez, iniciando o assunto de forma pouco didática, visto que a videoarte no mundo se inicia nos anos 60, tomaremos o rumo de contar seu surgimento a partir do Brasil, pois faz mais sentido conhecermos os trabalhos dos vídeo artistas brasileiros e tomarmos como base o texto de Arlindo Machado, (título), e se apropriar desse universo que tem especificidades muito nítidas, o que implica em entrar em contato com uma tradição super rica, também, pois a produção de videoarte no Brasil tem artistas extremamente interessantes e está ombro a ombro com as tradições mais férteis e complexas do mundo. Contudo, tal escolha nos gera um problema. A videoarte começa a acontecer no Brasil a partir de 1973 de um jeito muito específico, ao passo que a vídeo arte internacional tem seu início na década de 1960, como dito anteriormente, e, internacionalmente, começa de uma maneira bem diferente do que foi o jeito inicial do Brasil.

No Brasil a videoarte começa em grande medida, como uma ampliação do repertório dos artistas visuais contemporâneos da época. Toma inicio com pessoas que transitam por várias mídias e fazem experiências com várias linguagens, entre elas o vídeo. Apesar de ter alguns artistas um pouco mais específicos do vídeo, de fato, a videoarte surge como uma espécie de expansão do campo das artes visuais, ao passo que internacionalmente, ainda que haja essa ocorrência de uma expansão – no caso da música e não das artes visuais – dá pra afirmar que tem, em seu início, artistas mais típicos da videoarte, artistas que vão se dedicar de forma mais sistemática e reiterada a fazer experiências com a linguagem do vídeo, como é o caso do Nam June Paik ou do Wolf Vostell e outros que estão entre esses grandes pioneiros iniciais.

Escolher partir da história no Brasil desvia um pouco o foco do fato de que já nos anos 60 ocorre o surgimento de uma cena relativamente consistente de videoarte e com artistas próprios e específicos desta linguagem. Apesar de perdemos um pouco da informação inicial da história, que deve ser retomada ao longo desta aula, ganhamos muito pelo lado nacionalista, de conhecer artistas mais próximos dos nossos contextos como artistas e que experienciaram questões que atualmente estamos vivenciando. Logo, na história pelo Brasil, não vamos encontrar essa particularidade inicial, pois encaramos, de cara, certa sinergia com as artes visuais, entretanto, a videoarte brasileira se desenvolve de maneira potente e em pouco tempo vai elencando artistas específicos deste campo.

Antes de começar a exemplificar a videoarte no Brasil, aproveitando esse pequeno passo para trás em direção a cena internacional, é importante dizer o quanto a videoarte é tida como uma consequência do surgimento das câmeras leves, especialmente da Sony Portapak, uma câmera que surgiu justamente no final dos anos 60 e que está, diretamente, associada em grande medida ao surgimento da videoarte. Com seu surgimento, pessoas como o Nam June Paik passaram a poder fazer experiências com essa nova linguagem que estava emergindo em função da possibilidade de gravar imagens em fitas de sinal eletrônico e não mais filme. Além de todas as consequências que existem implícitas no surgimento deste sinal, especialmente do ponto de vista da plasticidade que essa imagem vai ter, visto que a imagem de filme não era feita para ser muito interferida, contudo, a imagem eletrônica é suscetível de muita manipulação, inclusive esses primórdios da videoarte são marcados por uma ênfase nessa manipulação radical da imagem em sinal eletrônico, que permitia, por exemplo, transformações de cor, ruídos no vídeo, efeitos de feedback ou recortes mais radicais das imagens, com sobreposição de cena de maneira mais desmontada e fundida, o que, de certa maneira, fez com que essas interferências gerassem certa característica gráfica muito mais do que uma imagem representativa. O começo da videoarte é muito associado às inovações e facilitações tecnológicas, como a portabilidade de uma câmera que vai permitir filmar certos tipos de cena e o surgimento das ilhas de edição eletrônica que vão levar recursos de edição como esses anteriormente citados e, portanto, dá a chance de surgimento de artistas mais específicos do vídeo como os já citados Paik e o Vostell.

Devemos ressaltar, contudo, que internacionalmente existiram, também artistas mais heterogêneos e que se apropriam do vídeo a sua maneira, como o artista estadunidense Vito Acconci e outros que trabalharam numa multiplicidade maior de linguagens e que, também, vão ter obras significativas em vídeo. Vale notar que, no Brasil, assim foi o início da videoarte – artistas visuais se apropriando a sua maneira das possibilidades do vídeos -, enquanto que internacionalmente já aparecem nomes mais específicos.  

Devemos ponderar, contudo, esse tipo de discurso a respeito da Portapak e a respeito das ilhas eletrônicas. Arlindo Machado, em seu texto (título), não implica certa determinação exagerada que o papel da técnica vai ter no desenvolvimento de uma linguagem e, de certa forma, é resultado de bastante esforço tentar evitar esse tipo de olhar exagerado conforme percorremos as obras e os vídeo artistas desta época. Entretanto, os materiais a serem percorridos sugerem um pouco esse tipo de raciocínio, de pensamento teórico e de discursos críticos, que, ao aparecerem nítidos, algumas vezes acabam por serem contaminados por esse tipo de lógica. Mas, não desconsiderando o papel que uma câmera tem em um pensamento de linguagem, a formulação de uma linguagem com uma videoarte é muito mais complexa do que afirmar que o simples aparecimento de uma câmera torna certos macetes possíveis. É possível encontrar, com maior profundidade, a complexidade dessas gênesis no livro “Beyond the Dream Syndicate” (2008) – apesar de o livro não ser exatamente focado na videoarte – do Braden Joseph, a respeito do Tony Conrad. O começo do livro mostra a cena da arte experimental de Nova Iorque nos anos 60, onde está o surgimento da videoarte, e, apesar de seu enfoque não ser a videoarte, Joseph consegue relatar a riqueza e a complexidade de fatores que levam ao surgimento da linguagem que se dão nesse contexto, passando um pouco pela contracultura, o espraiamento das pesquisas de vanguarda da Europa para os Estados Unidos e como tudo isso vai levar a certos espaços de ensino da arte muito mais engajados em formas experimentais, pela presença de algumas pessoas que foram nomes chave dentro desses contextos como, por exemplo, John Cage e sua ligação com a BlackMountain College, no interior dos Estados Unidos. Joseph, ao longo do livro, passa por toda a existência desses formatos próprios, exemplificando o momento com nomes de potências enormes como, o já citado, Cage e Robert Rauscenberg, nomes que se tornam de extrema importância na arte contemporânea dos Estados Unidos, chegando a atingir um nível internacional.

Toda a história explicitada por Braden Joseph, mostra como todos os caminhos levam a um espírito de experimentação com a linguagem de subversão das lógicas existentes, de abertura a processos fora do convencional e um contexto que estimula um certo reaparecimento – se quisermos pensar que existiram as vanguardas históricas, antes de a guerra dar uma interrompida – desses contextos de maior especulação no plano da linguagem do comportamento da política. Logo, fica claro que é existe todo um contexto complexo por trás do surgimento da videoarte e não apenas a invenção de um dispositivo que leva a possibilidade de se pensar em linguagens como a da videoarte, mas, obviamente, a câmera também tem um papel importante, porque é claro que a maneira com que ela consegue produzir certas texturas de imagem, sua leveza que torna possível filmar certos tipos de espaço ou adaptar movimentos, de um certo jeito, faz a câmera se relacionar com o corpo com uma certa facilidade e isso é, definitivamente, uma das coisas que o Arlindo Machado vai identificar no início da videoarte no Brasil. Portanto, é incontestável que o dispositivo, obviamente, tem um peso, mas não podemos descontar a existência de um contexto muito mais complexo, e de extrema importância, que está em volta do surgimento da videoarte e de outras linguagens que aparecem mais ou menos na mesma época (como por exemplo a performance e a intervenção urbana) que são, num certo sentido, desdobramentos desse contexto.

Reymond Williams em “Televisão” (2016) mostra explicitamente o contexto cultural, político e social extremamente complexo que leva a uma série de invenções menores e que, mais tarde, culminam na televisão. Williams consegue retratar que, na história, as pessoas sempre ansiavam por inventar certas coisas, sonhavam com certas possibilidades, os caminhos que se concretizam ou não se concretizam nesse processo do desejo e como os que se concretizam permitem avançar certos passos, mas os que não conseguem se concretizar nos incentivam a reformular alguns pensamentos, desejos e ideias, mas, sobretudo, Williams expõe um contexto muito mais complexo por trás das invenções, que, determinado por intenções, vão nos levar aos aparelhos, e não essa visão trocada que aparece em autores que afirmam que a técnica determina a realidade, como Marshall Mcluhan. Como no caso da galáxia de Gutenberg, por exemplo, a imprensa em 1534 causou um efeito em cadeia que foi mudando a sociedade em consequência dessa invenção. Logo, esse conjunto de autores – Joseph, Williams – consegue trazer um pensamento mais complexo a respeito desse tipo de acontecimento. 

De certo modo, a videoarte surge através dos músicos experimentais, o próprio Nam Jun Pike era um deles, e foi a partir da música – porque a música se aproximou dos processos eletrônicos – e dessas pesquisas com os dispositivos que foram surgindo ao longo do século 20 que o artista acabou se interessando por outros aparelhos que não eram mais apenas sonoros, mas passaram a ser na ordem da linguagem audiovisual. Esse é, de longe, um fator importante, talvez pouco levado em conta em alguns escritos críticos a respeito desse assunto e é até, de uma maneira ou outra, estranho de imaginar o porquê, visto que se fala muito a respeito da característica rítmica da videoarte.

Portanto, a maneira como videoarte leva um tipo de articulação audiovisual não tem a ver com encadear uma história mas com a pulsação e o ritmo de certas imagens que têm determinados tipos de plástica e intenções e texturas, o que é diretamente conectado com o lado musical da arte visual. Existiam, também, certos exemplos de visual music silenciosos, mas, mesmo assim, isso não quer dizer ausência da linguagem sonora na obra, pois o fato de existir ritmo, repetição, pulsação, de existirem essas características que são estruturantes da música, e que logo passam a ser estruturantes dessas obras e da imagem em movimento, fazemos automaticamente essa conexão visual e rítmica. Um ótimo livro que desenvolve esse tipo de pensamento é “Matrizes da Linguagem do Pensamento: sonora, visual e verbal, aplicação na hipermídia” (2001) da Lúcia Santaella – o que faz até ser, de certo modo, injusto resumir um livro tão complexo, em si, pelo tipo de tradição de pensamento que ele dialoga também complexo – que parte da premissa de que existem certas matrizes de linguagem e elas têm certas características que estão associadas, na primeira delas, às sonoridades, na segunda, às visualidades e, na terceira, às textualidades. No caso do som: o ritmo, o contraponto e a repetição, a combinação de duas coisas que vão entrar em tensão, pulsação. Essa seria, resumidamente, a matriz sonora ao mesmo tempo que a visual tem a ver com representação direta do mundo, organização de formas e outras intenções dessa ordem. O livro propõe que isso não quer dizer uma associação direta entre matriz de linguagem, ou seja, as características da matriz sonora não aparecem só no som, mas, pelo contrário, afirma que existe uma lógica de predomínio que se espalha para as outras linguagens fazendo com que a gente possa ter, por exemplo, uma manifestação visual ou textual que usam a lógica da matriz sonora, assim como todas combinadas. 

Assim como em pinturas quanto em imagem em movimento vemos a configuração dos elementos, um certo desdobramento dinâmico dos elementos, em que o artista explora um padrão da música. A videoarte consegue ter muito a ver com isso e Arlindo Machado complexifica isso enormemente. A grande maioria dos trabalhos, até então mostrados, são de cunho abstrato e a videoarte, pelo contrário, apesar de não ser figurativa num sentido explícito de gerar uma imagem narrativa e de ter uma representação realista das coisas, vai ser sempre, ou na grande maioria das vezes, feita a partir de imagens que vêm da realidade. Então a câmera captando elementos, e a possibilidade de transformação no material do que vai ser explorado depois no momento da edição, da montagem das obras, é o investimento que a videoarte traz para seu segmento, sua linguagem. 

De certo, tem alguns artigos escritos sobre a presença da música na videoarte, o próprio Arlindo Machado tem um texto a respeito disso, mas é curioso que esse tema não aparece na historiografia mais formalizada, nem mesmo Arlindo, quando escreve sobre a história da videoarte, explícita tanto isso, optando por fazer um artigo específico para tratar dessa questão, mas quando está movimentando os assuntos de organizar a história e fazer o encadeamento dos artistas sequer sugere explicitamente. Pike, artista citado anteriormente, era músico e foi um dos transgressores da videoarte no mundo, e é de fácil absorção que não se extraem as consequências mais complexas disso em termos desse pensamento sobre a contaminação do audiovisual por lógicas da linguagem sonora que, ironicamente, vai ser uma das coisas marcantes da videoarte.

Arlindo Machado, em “Made in Brasil – Três Décadas do Vídeo Brasileiro(2007), consegue traçar um fio condutor na contextualização da videoarte no Brasil. Neste livro, Arlindo tenta estabelecer as linhas de força do vídeo no Brasil a partir de dois vetores de organização: um mais cronológico geracional e outro mais ligado a conceitos. Para fazer isso ele parte de uma espécie de gênese do vídeo no Brasil, ou seja, uma discussão a respeito de quando surgiu e qual seria a primeira obra de videoarte, como são os primeiros passos dessa linguagem no país, dialogando de forma explícita com com o livro “Extremidades do Vídeo” (2008) de Christine Mello, para insistir e reforçar num ponto de vista, que veio ao longo da história do seu pensamento, de que o primeiro vídeo da história da videoarte brasileira é O “M 3×3” (1973) da artista visual Analívia Cordeiro. Contudo, no livro “Extremidades do Vídeo”, Christine Mello propõe um recuo nesse início e argumenta que a videoarte no Brasil pode ser pensada a partir das experiências que Flávio de Carvalho fez na televisão nos anos 50, assim como em obras de artistas como por exemplo Antônio Dias e outros que estavam fora do Brasil fazendo experiências com vídeo usando a televisão no contexto da produção e que, portanto, tais experimentações podem ser consideradas uma espécie de antecipação da videoarte, como por exemplo em “Tropicália” (1967), de Hélio Oiticica, instalação que possuía um aparelho de televisão deixando claro a existência desse flerte entre artistas visuais mais voltados para linguagens contemporâneas com a televisão enquanto mídia, enquanto objeto, enquanto lógica de linguagem.

Arlindo, contudo, reforça seu argumento com a explicitação de que nenhuma dessas experimentações citadas como “recuo” por Mello tem registros além de relatos ou da performance filmada da televisão. E, mesmo assim, não seria certo pontuar como performance alguns trabalhos que eram, de certo modo, inserções dentro de algum programa trazendo a quebra e o desvio da televisão tradicional. Na época, tudo acontecia de uma maneira um pouco híbrida, entre um aparecimento num programa de TV e uma obra audiovisual propriamente dita. Alguns trabalhos de Antônio Dias, por exemplo, tem registros em catálogos, mas os vídeos que foram mostrados na televisão, de fato, desapareceram. Arlindo argumenta que o primeiro trabalho, efetivamente, de vídeo na história da videoarte brasileira é a obra “M 3×3” de Analívia Cordeiro, porque ele é o único tape que ficou preservado, até hoje acessível e que é possível de assistir como memória registrada, como documento desses princípios da videoarte no Brasil.

O que nos leva a um começo curioso, avaliando quantas coisas essa obra vai disparar. “M 3×3” foi produzida pela TV Cultura – isso, de certa maneira, é uma marca desses primeiros trabalhos, não há relação com a televisão, mas há a necessidade de algum tipo de aporte institucional que torne a obra possível porque, talvez um pouco diferente do que aconteceu fora do Brasil (onde essas câmeras mais leves já começam a implicar em uma certa democratização do acesso ao audiovisual, com custo muito menor que as câmeras de cinema mais antigas) apesar de aqui também existir em parte esse relativo barateamento, essa primeira fase da videoarte ainda vai depender muito das instituições porque, apesar de serem mais baratas, as câmeras ainda eram caras para serem encontradas por um artista individual num país que estava passando por uma ditadura militar. Os artistas brasileiros tinham dificuldade de importar equipamentos, além do fato do câmbio, impostos e esses percalços que normalmente já deixam o equipamento caro vindo de fora, existe todo o contexto político que complexificou ainda mais exacerbadamente a dificuldade de acesso, com isso, as primeiras câmeras que vieram para o Brasil eram encontradas em televisões ou instituições como o MAC, Museu de Arte Contemporânea, que compravam uma câmera e permitiam que os artistas utilizassem. 

A produção pela TV Cultura é um aspecto significativo nessa primeira obra de videoarte no Brasil, é o que indicava um pouco esse contexto, como uma pista dessa situação social e política maior. Outra coisa que gera uma certa particularidade é o fato de que ela é uma obra de videodança, logo, a videoarte no Brasil começa não num experimento amplo da linguagem, mas dentro de uma vertente específica que tem a ver com essa intersecção com o mundo das coreografias e do corpo e isso vai se manter, de alguma maneira, tanto que uma das chaves conceituais para entrar nos trabalhos que Arlindo Machado organiza tem a ver com a questão do corpo no vídeo. Afirmar que o começo da experiência de videoarte no Brasil, utilizando o caso da obra de Analívia Cordeiro, é estritamente sobre a conversa entre corpo e vídeo é um tanto quanto exacerbado, porque corpo no vídeo não é uma discussão que acontece só no Brasil. Por exemplo, no livro de Yvonne Spielmann, “Video: the Reflexive Medium” (2005), também é falado muito a respeito de como o corpo aparece na primeira experiência de videoarte, em um âmbito mais internacional. 

“Video: the Reflexive Medium” é um excelente livro, bastante potente, para quem se interessa pela história da videoarte, entretanto, um pouco complicado de ler, num certo sentido, pois tem explicações teóricas e discussões conceituais bem alongadas, entremeando-as com uma narração sobre a história, de forma não cronológica, da videoarte. Revela artistas importantes dos primórdios e de um certo desdobramento a partir de diálogos com os conceitos que vão aparecendo e tratando, também, da questão do corpo no vídeo ao falar de artistas mais do final dos anos 60 e começo dos anos 70. Contudo, Spilmann fala de um outro corpo. Menos formalizado do que o corpo da dança, um corpo sem dramaturgia e coreografia planejada, um corpo mais ligado ao improviso ou a presença diante da câmera.

A obra “M 3×3” nos traz esse começo da videoarte no Brasil, que suscita um mundo de questões pelo simples fato de ser uma videodança produzida pela televisão, chega a ser uma obra um tanto quanto transicional, que recupera lógicas anteriores ao mesmo tempo que explora possibilidades do vídeo. Diferente de artistas como Nam Jun Pike e Vostell, anteriormente citados, que são tidos como os pioneiros internacionais, em que já existe uma lógica de ruptura intensa com o passado ao surgirem as novas experiências de videoarte, uma busca pela subversão de linguagem pelas especificidades da linguagem do vídeo, um desmonte da lógica audiovisual instituída em favor de novos caminhos e novas pesquisas. “M 3×3”, por exemplo, dialoga com o Ballet Triádito da Bauhaus, de Oskar Schelmmer, um trabalho da época das vanguardas que propunha uma coreografia do corpo – uma dança no estilo clássico da Bauhaus – que tem uma lógica de coreografia num espaço geométrico, vestimentas super particulares e que exploraram os princípios de pesquisa com geometria e com cor, criando síntese de uma lógica do pensamento geométrico proposto como tradicional da Bauhaus, mas, também, explorando uma certa pasteurização geométrica do corpo, criando uma espécie de regra, uma espécie de partitura, que vem como princípio de organização, conversando diretamente com a obra de Analívia Cordeiro. 

Em “M 3×3” existe uma marcação geométrica muito explícita do espaço que se dá, inclusive, no plano visual, visto que foi produzida num estúdio branco com faixas pretas pintadas em uma estrutura que formava uma espécie de um jogo da velha, criando um campo limitado em que as dançarinas podem atuar. Entende-se, então, que não é esse tipo de vídeo que vai explorar a materialidade do vídeo ou possibilidades mais plásticas da linguagem e radicalizar no tratamento para tentar romper com as lógicas anteriores, contudo, essa obra tem uma espécie de conexão com uma lógica que já estava estabelecida em um outro momento, conversando e procurando expandir, complexificar e levar a outros lugares na produção e investigação do corpo no vídeo e da experimentação possibilitada na videoarte. 

De certa forma, isso marca uma certa diferença entre os primórdios da videoarte. Não existe, de maneira alguma, um peso qualitativo entre ambas as pontuações. O que existe é mais um certo diagnóstico que nos permite pensar um pouco melhor a respeito do que é a linguagem do vídeo no Brasil e o que esse tipo de experiência inaugural nos revela a respeito do próprio contexto em que tudo está sendo feito. Um pouco ao modo do que o Rodrigo Naves fez em seu livro “A Forma Difícil” (1996), em que o autor fala a respeito desse “déficit” formal que existe no modernismo brasileiro, como se aqui a forma fosse um pouco mais solta, um pouco mais – não qualitativamente – “fraca”, em comparação com o rigor acentuado das experiências formais dos modernismos internacionais. Rodrigo Naves consegue tecer de uma maneira brilhante a diferença entre os modernismos, pois não usa tal diferença para construir um raciocínio dizendo que o modernismo brasileiro é menos interessante, do ponto de vista formal, do que o modernismo internacional, Naves usa tal diferença para mostrar como isso diagnostica uma série de características do Brasil e nos mostra como pensar o país a partir dessa particularidade que ele descobre ou como pensar esse modernismo no contexto de como foi o ensino de artes no Brasil, falando do começo dos liceus e de uma certa lógica de linguagem que veio se estabelecendo. 

Ao compararmos a obra de Analívia Cordeiro com obras internacionais, de forma alguma estamos fazendo uma comparação qualitativa entre os inícios da videoarte, mas tentando mostrar de alguma maneira o que isso revela em termos de contexto de país, de onde essas obra estavam sendo feitas. Vale ressaltar que é importante pensar a obra de Analívia Cordeiro como um vídeo de uma dramaturgia montada. Apesar de não sabermos detalhes do processo de realização da obra, não existirem informações exatas sobre isso – portanto, é difícil afirmar qual o grau de planejamento, se teve um roteiro detalhado, por exemplo – é indiscutível que “M 3×3” é uma obra que parte de um planejamento, que existe uma coreografia premeditada, que as dançarinas estão fazendo movimentos cumprindo um certo percurso, cumprindo uma certa movimentação prevista, portanto que tudo foi construído de antemão. Além de certos pontos de fuga que surgem por causa da geometria desenhada na tela, gerando diagonais do olhar, causando atrações diferentes no olhar do público dependendo do ângulo em que estão posicionadas, o que nos dá a entender que a obra tenha sido previamente coreografada. Analívia Cordeiro credita a obra como “dança”, contudo, tais créditos são construídos de uma maneira muito comum nas obras industriais de televisão, não tão autoral – nomeando diretamente o diretor de fotografia, os responsáveis pelo som etc e uma série de elementos que marcaram essas diferenças nesse ponto de partida da videoarte no Brasil.

Em termos de comparação tangível, visto que ao longo da aula tivemos uma conversa entre a videoarte no Brasil e em âmbito internacional – apesar de não intencionalmente -, devemos trazer como exemplo a obra “Global Groove” de Nam June Paik, curiosamente feito, também, em 1973. Assim, pode-se tornar possível enxergar com mais clareza essa especificidade do vídeo de Analívia Cordeiro em comparação com essa videoarte mais disruptiva de modo a tangibilizar um pouco melhor a diferença. Nam June Paik começou suas produções nos anos 60, mas a lógica de linguagem e de exploração foi, ao longo de sua carreira e pesquisa, ficando mais refinada, o que nos traz certa oportunidade de formular com mais clareza a diferença entre as obras brasileiras e as internacionais, visto que Paik teve um série de produções crescentes, fazendo experiências com essas características videoartística desde o começo de 1960, e, ao produzir “Global Groove” em 73 – mesmo ano em que Analívia Cordeiro produziu “M 3×3” – conseguimos balancear a evolução e a intenção mais mapeada em questão de linguagem na videoarte.  mas é o mesmo pensamento né então apesar. É, de certa forma, interessante comparar ambos os vídeos no sentido de que no início do vídeo de Paik o corpo tem uma presença muito marcada, assim como em toda a vídeo dança de Analívia Cordeiro, e, excluindo a camada de vídeo, talvez seja um corpo até mais convencional do que o apresentado Cordeiro, uma dança menos convencional e mais experimental enquanto linguagem do corpo, mas, por outro lado, é um corpo não coreografado, é um improviso dentro de estúdio com pessoas dançando sem qualquer planejamento anterior e, mais do que isso, é um desmonte do corpo e um reforço à linguagem, enquanto no vídeo da Analívia Cordeiro existe uma espécie de transparência da linguagem, um vídeo para que a coreografia apareça, sem tantas interferências na materialidade da imagem, mesmo que a montagem gere uma ou outra situação mais inusitada. 

Cordeiro, se pensarmos numa continuidade mais tradicional, produzem seus vídeos sempre com a intenção de vermos o corpo como um elemento principal dentro da lógica de linguagem de sua obra, ao passo que Paik, e “Global Groove” tenta fazer com que o corpo se torne uma espécie de material na produção, um elemento completamente dissolvido, borrado, desmontado e subvertido que se torna plástico conforme as alterações são feitas numa mesa de edição, fazendo com que a materialidade da linguagem venha para primeiro plano na produção e o corpo desça um pouco para segundo plano. Paik, de certa forma, é muito mais ligados a um pensamento diferente ao do registro do corpo em coreografia, mas uma interface corpo e câmera, voltada à linguagem do vídeo de maneira a não ser interpretada como uma dança que foi filmada, sendo muito mais agressivo no tratamento gráfico da imagem.