Exposição Blackberry Palavra e Imagem, individual de Walter Silveira na Caixa Cultural São Paulo. O artista, assim como Tadeu Jungle (que dia 15 abre exposição na Oi Futuro, no Rio ) é um dos expoentes de uma geração que levou adiante as premissas da poesia concreta: diálogo fértil entre pop e erudito, experimentação com linguagens emergentes e inserção crítica na cultura urbana contemporânea. A exposição de Silveira na Caixa apresenta uma amostra significativa da produção múltipla deste que é um dos artistas contemporâneos brasileiros mais importantes, com trânsito importante entre os circuitos de comunicação e arte. Em seu texto sobre Communication Art, Frank Popper afirma que nossa “resposta ao ambiente planetário nos níveis social e político ainda é informada por concepções da experiência humana completamente inadequadas e obsoletas” (Cf. Art of the Electonic Age, p. 126). Publicado em 1997, o texto revela uma mentalidade que ainda perdura, resultando na dificuldade de absorver manifestações de linguagem engajadas na ruptura.
Blackberry Palavra e Imagem oferece uma experiência insólita de dissolução de temporalidades. Mesmo não sendo uma retrospectiva, faz uma arqueologia ampla da passagem de Silveira por diferentes linguagens, conforme a paisagem midiática contemporânea vai se reconfigurando. Em seu percurso, o artista une grafite, rock, videoarte e síntese oswaldiana em pílulas de humor ácido e desconstrução poética e videográfica. Mas, apesar do recorte arqueológico, a exposição aponta para o futuro, o que faz lembrar Baudelaire, quando o poeta francês afirma que o passado é interessante “pela beleza que dele souberam extrair os artistas para os quais ele era o presente” (Charles Baudelaire, O Pintor da Vida Moderna, p. 851).
Além de reunir fragmentos que já apareceram dispersos durante a carreira de Walter Silveira, mostrando o conjunto de sua obra de uma forma que permite entender as relações entre suas diferentes facetas, a exposição também revela o pioneirismo de quem esteve sempre atento à velocidade dos dados e lances que reconfiguram a vida na cidade. Neste sentido, são especialmente significativos dois trabalhos que talvez não estejam entre os mais lembrados de Walter Silveira: Nervuras de Aço e Busca Vida.
Nervuras de Aço contrapõe um objeto de blocos de metal escovado a uma TV que liga e desliga, oscilando entre o silêncio e o ruído eletrônico. Tensão entre o ruído branco emitido pela TV fora do ar e a limpeza da superfície de metal, a obra oscila entre a entropia e o silêncio, unindo os dois elos extremos do processo de transmissão. Aqui o olhar antropofágico aparece no diálogo como precário e a gambiarra, estabelecendo uma ponte entre a invenção com letras e a invenção com sucata. Remixando o termo criado por Fred Paulino para descrever sua exposição Gambiólogos, é possível entender Nervuras de Aço como um exercício de gambiarra nos tempos do eletrônico: objeto que antecipa práticas do que atualmente se chama circuit bending, a desmontagem de equipamentos usados para criar instrumentos musicais com sucata. Ao propor uma homenagem à Arte Povera (ver entrevista abaixo), Silveira antecipa o procedimento, com esta TV modificada, misto de dispositivo de exibição de imagens e escultura eletrônica.
Busca Vida, poema em laser projetado sobre uma empena de prédio, desloca para um contexto de virtualidade as experiências de grafite bastante presentes na poesia de Walter Silveira. A obra mistura projeção de imagens de caligrafia eletrônica sobre a arquitetura da cidade e poesia sonora, num mix ideogrâmico e fragmentário. Busca Vida antecipa os procedimentos atuais de videomapping, projeção em fachadas e grafite eletrônico, em um contexto de dificuldades técnicas significativas (ver entrevista abaixo).
Além destes, é possível ver clássicos como AC/JC – VT preparado, os videopoemas usados em Non Plus Ultra e Heróis da Decadêcia, a série Banheiro Publiko (foto abaixo) e conhecer facetas menos disseminadas da obra de Silveira, que revela uma consistência sólida, aliada à diversidade de procedimentos e linguagens. Bons exemplos são Poço (foto no final do post), o belo vídeo em parceria com Betty Leiner, e o videoensaio sobre Wesley Duke Lee.
Entrevista com Walter Silveira
Marcus Bastos: Blackberry Palavra e Imagem tem vários lances premonitórios, até a inusitada antecipação de uma marca famosa de celular em sua assinatura (quem sabe um avatar avant la lettre, em alguma rede social ainda não inventada?). Quando você fez estes trabalhos, existia uma postura de vanguarda explícita ou isto já era uma atitude que sua geração tinha superado, apesar da clara influência da poesia concreta?
Walter Silveira: O Blackberry, Walt B. Blackberry, surgiu no início dos 80, como tentativa de criar um heterônimo para assinar os trabalhos de poesia caligráfica. De fato, sou um dos poucos se não o único, que pode dialogar com a marca sem pagar royalties… Rs, rs…
Na segunda metade dos 70, quando comecei a atuar, a postura era iconoclasta e irreverente, características do comportamento de vanguarda. As poéticas visuais eram contaminadas pela intermídia: performance, xerox, filme, vídeoarte, Dada, Fluxus, POP.
MB: Como você optou pela escolha das mídias que foi usando em sua trajetória, que transita pela serigrafia, pelo grafite e pelo vídeo, entre outros? Era uma escolha estética apenas, ou existia um desejo de estar em contato com as tecnologias mais recentes da época?
WS: Espontaneamente, a partir da aproximação das mídias, pela curiosidade ou ineditismo delas. Na poesia, arte milenar, atingir a invenção trabalhando com as novas mídias é muito mais provável que, hoje, se dedicar a escrever soneto — forma muito usada e onde inovar é quase impossível. Então experimentar o experimental sempre me fascinou. Diga-se que é diferente de arte experimental (como disse Hélio Oiticica).
MB: Qual a diferença entre “experimentar o experimental” e “arte experimental?” Algo relacionado com a presença da artes nas instituições que parecem esperar certos tipos mais “domesticados” de ruptura, e refrear “selvagerias” mais espontâneas (um exemplo é o grafite, que continuou marginal por bastante tempo antes de ser absorvido)?
WS: A referencia é um texto de Hélio Oiticica publicado na coletânea NAVILOUCA, no início dos 70, “ Experimentar o Experimental” . Basicamente fazendo a distinção entre a ação experimental, fora de categorização -inovadora e inventiva- daquela já estabelecida como -arte experimental- ações próprias da arte conceitual. Hélio em suas ações ultrapassou o território da arte, ao propor experimentações vivenciais que juntam sensorialidades,mais complexas que somente a visual.
MB: Nervuras de Aço antecipa as práticas hoje conhecidas como Circuit Bending. Na época já existia uma cultura de eletrônica de garagem? Qual sua motivação para fazer este trabalho?
WS: A peça “Nervura de Aço ou Marco do Vale” apresentei em Campinas, na mostra “Afinidade Eletivas”, em 2005. Com curadoria do Agnaldo Farias depois de alguns anos, em outra expo coletiva em São Paulo. A idéia, além de homenagear o arquiteto/escultor Marco do Vale, remete à arte povera e conceitual dos anos 70, Vostel e Nan june Paik ecoando nos trópicos. Depois que você acusou, vejo até proximidade com o circuit bending. Mas pensei mesmo em uma gag- objectual: , um inutensílio: o ruído, a intermitência, o chuvisco, a escova de aço, a mangueira de plástico conectando as partes. Como se estivesse lavando o ruído da imagem, tudo isso dialoga mais com a Patafísica daquele Alfred Jarry.
MB: Seus poemas em laser dialogam de forma intensa como o espaço público. Como foi montar a infra-estrutura para estes trabalhos? Você tinha autorização para projetar? Só você apresentou poemas nesta projeção ou outros artistas estavam envolvidos?
WS: Essa ação performática, “Kebra Cabeza”, aconteceu na abertura da exposição “POIESIS” com curadoria de André Vallias, Friedrich Block e Adolfo Mojento Navas na Oi Futuro flamengo, RJ, em 2007. Do terraço do prédio da OI projetávamos na parede do prédio vizinho, a uns 50 metros dali. A imagem projetada era transmitida para um display com quatro monitores LED, instalados no hall de entrada do espaço cultural. Gravamos o que grafamos, editamos e transformamos em DVD sonorizado que foi exibido na exposição. O laser grafitti, já havia experimentado no final dos anos 90, quando do happening comemorativo dos 90 anos da Folha de São Paulo, no cruzamento das avenidas Paulista e Consolação. Intervenção urbana coletiva de projeções animadas de poesia com sonorização.
MB: Esse happening 90 anos da Folha gerou algum tipo de documentação? Sempre ouço falar disso como uma experiência pioneira, mas nunca me deparei com os rastros…
WS: Deste happening guardo um registro em VHS, muito precário, pois o evento aconteceu sem condições de luz, até por causa das projeções. Naquela época o projetor era enorme e havia lá, uma parafernália de equipamentos como geradores de eletricidade. O evento aconteceu duas vezes, na primeira sem sonorização e na segunda, em outra data, com anuncio da Folha, teve mais público, reuniu umas cem ou cento e cinqüenta pessoas, e foi sonorizado. Teve nota na Ilustrada, na época.