O indivíduo como objeto do retrato

Em O espaço na poesia e na pintura através do ponto de fuga, Mc Luhan antecipa um argumento que será central em A Galáxia de Gutenberg. O livro mostra como o indivíduo surge em decorrência do ponto de fuga, na medida em que há um centro a partir de onde o olhar segue as linhas que convergem no fundo da imagem.

Em Face and Mask, de Hans Belting, este surgimento do indivíduo aparece por meio da figura do olhar dialógico, em consequência do surgimento do retrato, que passa a ocupar um espaço de representação antes preenchido pelos ícones religiosos. O argumento de Belting é complexo, pois articula vários vetores em que acontece esta passagem. Um deles, que ocupa a parte inicial do livro, é a fusão entre rosto e máscara. A máscara deixa de ser um objeto ritual colocado na frente do rosto e torna-se uma espécie de personagem que, através das expressões faciais, permite que as pessoas performem sua face pública. A esta altura, o livro ainda não trata deste processo em que o eu vai aos poucos se acomodando como objeto do olhar.

Ao tratar do retrato, o texto se aproxima do problema do indivíduo de forma mais explícita. O autor mostra como, por meio de mudanças nos regimes de representação visual, acontece um processo que corresponde ao abandono de uma visão mitológica do mundo, em favor de uma visão científica. O homem vai ocupar o centro desta visão e isto acontece de forma bastante concreta nas práticas do retrato. Ao mostrar como se dá a passagem do rosto real para o rosto similar, Belting identifica um deslocamento do olhar, que vai colocar o espectador face a face com os personagens dos retratos. Este olhar para o outro, que surge numa configuração que apenas pelo aspecto formal une o ícone religioso ao retrato — de fato, há uma mudança radical no sentido desta imagem.

Belting localiza esta mudança de sentido de muitas formas, em sua obra. Trata-se da passagem da imagem como objeto de culto para a imagem como objeto de exposição, numa proposição em que o teórico alemão ao mesmo tempo prova de forma extensiva e amplia o modelo benjaminiano. Não por acaso, as práticas de representação do rosto atingem um ápice de realismo a partir de meados dos anos 1400 (no retrato que Roberto Campin faz daquele que provavelmente é o cortesão burgundiano Rober de Masmines e no auto-retrato de Jan van Eyck), levando ao surgimento do auto-retrato, em um processo que vai culminar com Rembrandt, nos anos 1600.

Este aumento de realismo acontecerá também na pintura de paisagem, à medida em que o processo de representação e auto-representação do eu atinge sua maturidade. O exemplo mais contundente é Vermeer, que pinta Delft enquanto Rembrandt procura retratar a si próprio. A partir de então, tem inicio um lento processo de fratura na representação, por meio de obras como As meninas de Velazquez, e o Auto-Retrato de Johannes Gummp, em que o pintor representa de forma metalingüística o próprio processo de fazer a pintura de si próprio.

Belting é bastante explícito a respeito deste aparecimento do indivíduo na pintura, chegando a falar na “recém descoberta capacidade de comunicar o eu visualmente em um quadro", acrescentando que a “descrição da face, todavia, nesta instância já é a descrição do sujeito, e, portanto, a representação do caráter como auto-interpretação" (p. 138). Esta reflexividade vai inverter a direção da linguagem, que a partir deste momento começa a desfazer o pacto ilusionista da pintura, quebrando o efeito cortina que certos artistas procuram obter como forma de alienar seu público da linguagem.

Um dos artistas que vai inverter esta direção da imagem, quebrando com o pacto realista, é Johannes Gumpp, em seu Auto-Retrato.

Outro é Vermeer, com seus trompe l’oeils, e especialmente numa obra Die Malkunst.

Leave a comment

Your email address will not be published. Required fields are marked *