A IV Mostra do Programa de Fotografia do CCSP apresenta 3 artistas selecionados em edital público e 2 artistas convidados. Com trajetórias consistentes na arte contemporânea, Mario Ramiro e Marcia Vaitsman apresentam conjuntos de obras bastante diversos entre si, que indicam a hetegoreneidade de linguagens existentes na pesquisa fotográfica contermporânea. A seguir, um registro do trabalho de Ramiro. Em breve, material sobre a obra de Vaitsman.
Gabinete Fluidificado, de Mario Ramiro, faz referência (em seu título) ao cabinet fluidifié, espaço onde Louis Darget “exibia uma coleção de fotografias de fluido vital, do pensamento e fotografias espíritas, colocadas em pequenos envelopes presos às paredes”. A instalação fotográfica é composta de reproduções de imagens publicadas em livros e revistas brasileiros, durante o século XX. As imagens estão depositadas em envelopes translúcidos, numa configuração que permite que o público veja as fotos apenas através de sua mediação, tênue mas perceptível. Essa textura quase visível é uma chave de acesso (aqui a palavra é significativa) à obra: para além do mosaico de imagens, que traça uma arqueologia minuciosa das aparições sobrenaturais, a instalação estabelece um procedimento de visão (o olhar como limite da percepção, em sua impossibilidade enxergar o invisível). A obra sugere métodos para ampliar o campo da invisibilidade, em pesquisa sobre formas de mediação, e sobre mecanismos de aguçamento dos sentidos que permitem ampliar a percepção, captar frequências ausentes nos canais cotidianos. Mais que arqueologia das mídias, trata-se de uma arqueologia das formas de comunicação na cultura humana, sobre os limites do humano, sobre o imaginário de um sobrenatural que pode ser apenas falta de entendimento do que se passa nas ondas hertzianas cada vez mais ocupadas pelas redes contemporâneas.
Acompanhada de foto-livros que ampliam o universo visual da instalação (Sonâmbulos, Corpore Sano, Ectoplasma e O livro das Torres), a participação de Ramiro na IV Mostra do Programa de Fotografia do CCSP assume a configuração de um ensaio expandido, em que a mistura de mídias e a espacialização ressignificam o sentido do fazer fotográfico. O recurso ao livro de artista, suporte mais autoral, contrasta com o caráter industrializado das fotografias publicadas na imprensa, gerando um ambiente em que a imagem demonstra sua capacidade de conservação de instantes, mas também de conversação, de construção de discursos complexos sobre temas abstratos.
O belo “duplo díptico” (abaixo tento explicar o termo) Mesa de Acesso completa o conjunto. Misturando imagens e objetos, a obra é composta de quatro auto-retratos do artista. Em cada moldura há duas imagens, por isso o efeito de duplicação do já duplo: há um díptico escultórico que relaciona as duas imagens emolduradas, e um duplo fotográfico no interior de cada objeto. No contexto apresentado, o efeito sugere a existência de um desdobramento interno do indivíduo fotografado (como se ele fosse o corpo de outra corporeidade que o acessa?). O efeito de estilhaçamento vertical da imagem é de uma potência indescritível: o jogo de desdobramentos obtido pelo contraponto entre as imagens, quando vistas à distância, é multiplicado de forma fluída quando o observador se aproxima das fotos. Uma interferência sutil, que remete à lineatura das imagens eletrônicas tanto quanto sugere um processo de comunicação imperfeito. O procedimento empresta visibilidade ao invisível, da mesma forma que os círculos de fumaça que saem da boca do artista. A fumaça usada como purificador na Umbanda, a fumaça do baseado que abre canais de percepção, a fumaça que envolve em névoas de mistério o que está por trás da cortina translúcida que forma nos dias de neblina. Ao fotografar a fumaça e sulcar com recortes discretos sua imagem, o artista insere no campo visual alguns dos elementos mais fluídos e translúdicos existentes no mundo humano: o vapor e as marcas visíveis de interferência. O contraste entre a pesquisa exaustiva do ambiente com os envelopes translúcidos e os livros de artista e esta imagem sintética, carregada de sentidos múltiplos em seus poucos elementos, permite capturar a essência da pesquisa de Mario Ramiro (ver mais sobre o artista em http://contradiccoes.net/pesquisa/09-04-2012/): em busca de formas para representar o que os homens sentem mas nem sempre enxergam.
+ fotos e PDF fornecidos pelo artista, com documentação da exposição no CCSP