Lira Paulistana e a vanguarda paulista, documentário dirigido por Riba de Castro, é imprescindível para entender a cultura de São Paulo. O filme mostra o surgimento da cena independente, em meio à uma diversidade inédita de linguagens e estilos: uma marca da produção da cidade, desde então. Apesar de girar principalmente em torno da música (o que dispensa explicações), Lira Paulistana também ilumina momentos importantes para entender a história do audiovisual e da arte urbana.
Em depoimentos de Marcelo Tas e Fernando Meirelles, trechos de clipes do Olhar Eletrônico e registros de shows de alguns dos músicos que passaram pelo teatro, o filme registra o surgimento de um tipo de comunicação audiovisual tão alternativo e irreverente quanto os sons que desceram as escadas do teatro da Teodoro Sampaio. O tom desconstraído, os enquadramentos inusitados e os cortes espertos oferecem uma boa amostra do pensamento que levou a personagens como Ernesto Varela e programas de TV como Crig-Rá e Programa Legal, repaginadas no recente CQC. Um exemplo é a seqüência incrível de um videoclipe em que o coro de músicos abaixa ao mesmo tempo que a câmera “sobe”. O resultado é uma conversa entre imagem e som em que sincronia e defasagem desafiam o sentido tradicional de protagonismo: presença e ausência do coro / presença e ausência da cidade, sob os sons que ela inspira. Pensamento audiovisual sofisticado, decantado em sequências de filmes como Cidade de Deus e 360.
A entrevista de Edith Derdyk relembra o Mural do Lira, onde a cada “dois meses um artista plástico era convidado a ocupar aquele privilegiado espaço, interferindo na paisagem urbana de um dos pontos mais movimentados da cidade” (ver linha do tempo no site do filme, para mais detalhes). Inseridos no contexto de uma discussão histórica sobre a importância do Lira para um formato musical sem precedentes (de linguagem, produção e distribuição), que inventa maneiras inéditas de fazer canção ao mesmo tempo que abre as garagens para o rock e leva sons de todos os tipos para as principais praças e avenidas da cidade, as entrevistas que abordam o caráter multi-linguagens do espaço contribuem para contar histórias de formatos que surgem em São Paulo com grupos comos o TVDO, o 3NÓS3 e o Viajou sem Passaporte. No Lira, estes formatos encontram maneiras férteis de aproximar os universos pop e experimental.
Este espírito pode ser entendido de forma sintética em dois trechos de depoimentos em que Luiz Tatit e Helio Ziskind contam como a geração Lira Paulista aboliu a crença de que as linguagens experimentais eram objetos a serem compreendidos num futuro remoto, e inventou um jeito de descontruir o próprio presente, misturando humor e dissonância.
Bônus
A geração que mudou o cenário da música, do audiovisual e da arte urbana (este ano também merece ser lembrada a programação de 30 anos do Videobrasil), invadiu a mídia de massa com ideias consideradas incompatíveis com os espaços que ocuparam (em sintonia com o verso de Gilberto Gil, “o povo sabe o que quer, mas o povo também quer o que não sabe”), continua mudando pressupostos: a capacidade de documentar de forma minuciosa momentos importantes da história cultural do país começa a tornar obsoleta a visão, que parecia persistente, do Brasil como país com dificuldade de preservar suas memórias.