O flaneur na cidade modernista: avenidas como artérias urbanas

Rosler-LeFlaneur
Paul Gavarni, Le Flâneur, 1842

“Outras vezes, encontramos o fantástico puro, moldado ao natural, e sem explicação, à maneira de Hoffman: O homem das multidões mergulha incessantemente no seio da multidão; nada com delícia no oceano humano. Quando desce o crepúsculo, repleto de sombras e luzes tremulantes, ele foge dos bairros pacificados e busca, ardoroso, aqueles onde fervilha vivamente a matéria humana. À medida que o círculo da luz e da vida se estreita, procura-lhe o centro inquieto; como os homens do Dilúvio, agarra-se desesperadamente aos últimos pontos culminantes da agitação pública. E isso é tudo. Seria um criminoso que tem horror à solidão? Seria um imbecil que não consegue suportar a si mesmo?” (Baudelaire, 1995: 648)

“A multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como a água, o dos peixes. Sua paixão e profissão é desposar a multidão. Para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais, que a linguagem não pode definir senão toscamente. O observador é um príncipe que frui por toda parte o fato de estar incógnito. O amador da vida faz do mundo a sua família, tal como o amador do belo sexto compõe sua família com todas as belezas encontradas, encontráveis ou inencontráveis; tal como o amador de quadros vive numa sociedade encantada de sonhos pintados numa tela. Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidão como se num reservatório de eletricidade. Pode-se igualmente compará-lo a um espelho tão imenso quanto essa multidão; a um caleidoscópio dotado de consciência, que, a cada um de seus movimentos, representa a vida múltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida. É um eu insaciável do não-eu, que a cada instante o revela e o exprime em imagens mais vivas do que a própria vida, sempre instável e fugidia.” (Baudelaire, 1995: 857)

Em O Homem da Multidão, Edgar Allan Poe descreve a deriva noturna de um personagem que ao fim-da-tarde encontra-se sentado na mesa de um café, diante de uma avenida onde a multidão se adensa conforme a luz se esvai. Sua atenção projeta-se sobre um misterioso personagem, que ele segue noite adentro e cidade afora. O texto começa como um painel de tipos urbanos, um olhar para a cidade que parte de uma mirada macroscópica (“De início, minha observação assumiu um feitio abstrato e generalizante.” [Poe, 1986: 132]) para a atenção ao detalhe que, no entanto, revela-se inacessível (“… nada mais saberei a seu respeito e a respeito de seus atos” [Poe, 1986: 138]).

Um aspecto desta estranha perseguição é a incomunicabilidade inerente ao convívio urbano: “Quando se aproximaram as trevas da segunda noite, aborreci-me mortalmente e, detendo-me bem em frente do velho, olhei-lhe fixamente o rosto. Ele não deu conta de mim, mas continuou a andar, enquanto eu, desistindo da perseguição, fiquei absorvido vendo-o afastar-se” (Poe, 1986: 138).

Outro aspecto desta empreita de antemão fadada ao fracasso de perseguir alguém pela rua como forma de melhor entendê-lo é a inutilidade que sugere uma inversão do ethos modernista que então se anunciava através da urbanização racionalista das metrópoles. Baudelaire afirma, em Edgar Allan Poe, sua vida e suas obras:

“[Poe] Não sustentava, como fazem sectários fanáticos e insensatos de Goethe e outros poetas marmóreos e anti-humanos, que toda coisa bela é essencialmente inútil; mas sobretudo se propunha, como objeto, a refutação daquilo a que espiritualmente chamava de a grande heresia poética dos tempos modernos. Essa heresia é a idéia de utilidade direta.” (Baudelaire, 1995: 637)

Links
As Multidões, de Charles Baudelaire

Flâneur (Wikipedia)

Paris, Roman d’une Ville

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