iMaGeNSoNS: sincronias entre acontecimento e narrativa

Dois homens passam apressados diante do Conjunto Nacional, fones-de-ouvido que parecem não impedir uma sintonia incompatível com os bulbos dentro da orelha[1]. Os fios brancos que balançam em volta do pescoço chamam menos atenção que a parada súbita diante de uma loja qualquer. Não porque, hoje em dia, o branco cintilante dos cabos de fone-de-ouvido cause menos estranheza que desejado por Steve Jobs ao incluí-los no iPod[2], mas pela coreografia que executam. Um deles pousa a mão sobre o ombro do outro. Evento minúsculo, que poderia desaparecer na ampla confusão paulistana, não fosse a ênfase nos gestos (decididos? desajeitados? tímidos? espalhafatosos?). Ainda mais que, mesmo sendo noite de lua cheia, é sem precedentes a concentração de acontecimentos[3] fortuitos nos 300 e poucos metros que separam as ruas Augusta e Padre João Manuel.

Sem saber, quem andava nos arredores participava de Como se fosse a última vez…, narrativa[4] em que voluntários encenam instruções ditadas por um roteiro sonoro ouvido em dispositivos portáteis guardados nos bolsos ou fixos no corpo de alguma outra forma. O mp3 distribuído para os inscritos na performance (uns também não sabem quem são os outros, e não podem ouvir o roteiro antes da hora marcada para o encontro) propõe gestos e atos que enredam o espaço público geralmente impessoal das grandes metrópoles em acidentes sutis, de sincronia imprevisível e cumplicidade discreta. O excesso de normalidade revela aspectos pouco percebidos, apesar de rotineiros, da situação proposta. Deslocando para outro contexto a afirmação de Deleuze, seria possível dizer que estão “entregues a algo intolerável: sua própria cotidianidade”[5]. Como num plano sem corte do cinema-direto, é radical a sincronia entre acontecimento e narrativa.

Remetendo a uma versão super realista da cena em que Cecilia salta para fora da tela, em A rosa púrpura do Cairo, a subtlemob[6] rompe o limiar entre ficção e realidade, conforme seus participantes se misturam aos transeuntes incautos (não aqueles aglomerados na multidão do conto de Allan Poe, mas quem circulava na região da Avenida Paulista em 27 de Novembro de 2010). Mais que semelhanças, as duas propostas tem diferenças significativas, que permitem discutir o que distingue o cinema de manifestações audiovisuais contemporâneas como o live cinema e o audiovisual em mídias móveis. Uma distinção óbvia entre o filme e a subtlemobé o enredamento complexo proposto no segundo, através da sobreposição entre trilha sonora fictícia e mundo real. O efeito de coincidência entre narrativa e vida, num espaço que oscila entre a rotina e interferências inesperadas, rearticula ambas de forma recíproca, imprevisível, difusa, constante durante o tempo em que a performance é executada, e imediata[7].

O filme de Woody Allen, assim como outros que se empenham em desestabilizar a barreira imaginária entre os espaços ficcional e de fruição, serão sempre jatos de luz acomodados entre as quatro arestas que emolduram a tela no fundo de uma sala de cinema. Como se fosse a última vez… materializa e amplia o trajeto da personagem vivida por Mia Farrow, que se projeta mundo adentro. Mimese literal das fraturas entre filme e público criadas por Godard, possivelmente o cineasta que procurou mostrar com maior insistência que seus filmes eram construções a partir de realidades contraditórias, e não decalques de mundos estáveis ou fabulações especulares de imaginários imaculados.

Artigo completo na revista Z Cultural

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