“As grandes teses de Bergson sobre o tempo apresentam-se assim: o passado coexiste com o presente que ele foi; o passado se conserva em si, como passado em geral (não-cronológico); o tempo se desdobra a cada instante em presente e passado, presente que passa e passado que se conserva. Repetidas vezes se reduziu o bergsonismo à seguinte idéia: a duração seria subjetiva, e constituiria nossa vida interior. E, sem dúvida, Bergson precisou se expressar assim, ao menos no começo. Mas, cada vez mais, ele dirá algo bem diferente: a única subjetividade é o tempo, o tempo não-cronológico apreendido em sua fundação, e somo nós que somo interiores ao tempo, não o inverso. Que estejamos no tempo parece um lugar comum, no entanto é o maior paradoxo. O tempo não é o interior em nós, é justamente o contrário, a interioridade na qual estamos, nos movemos, vivemos e mudamos. Bergson está bem mais perto de Kant do que pensa: Kant definia o tempo como forma de interioridade, no sentido em que somo interiores ao tempo (só que Bergson concebe essa forma bem diferente de Kant). No romance, será Proust quem saberá dizer que o tempo não nos é interior, mas somos nós, interiores ao tempo que se desdobra, que se perde e se reencontra em si mesmo, que faz passar o presente e conservar o passado. No cinema haverá talvez três filmes que mostram como habitamos o tempo, como nos movemos nele, nessa forma que nos leva, apanha e alarga: Zvenigora, de Dovjenko; Um corpo que cai, de Hitchcock; Eu te amo, eu te amo, de Resnais. No filme de Resnais, a hiperesfera opaca é uma das mais belas imagens-cristal, enquanto o que vemos no cristal é o tempo em pessoa, o jorrar do tempo.”
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http://www.nytimes.com/video/arts/1247463664370/the-legacy-of-merce-cunningham.html
“Em primeiro lugar, esses três possíveis estados da mente não podem ser entendidos como dados estanques. Disse Peirce: “Nenhuma linha firme de demarcação pode ser desenhada entre diferentes estados integrais da mente, isto é, entre estados tais como sentimento, vontade e conhecimento.
Em segundo lugar, a camada de pensamento interpretativo, pensamento sob autocontrole, é apenas a camada mais superficial, à tona da consciência. Essa camada, no entanto, pode, a qualquer momento, ser quase fendida, subvertida pela pregnância de uma mera qualidade de sentir ou pela invasão de um conflito
/…/
Nessa medida, para nós tudo é signo, qualquer coisa que se produz na consciência tem o caráter de signo. No entanto, Peirce leva a noção de signo tão longe a ponto de que um signo não tenha necessariamente de ser uma representação mental, mas pode ser uma ação ou experiência, ou mesmo uma mera qualidade de impressão” (O que é semiótica, p. 53)
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Primeiridade
/Opus 161, de Thomas Wilfred – http://youtu.be/sqb88gdCM4Q
“pequenas sensações epidérmicas de sua roupa” / “o senso de qualidade geral do lugar em que você está” / “a consciência de estar só” / “a luz” / “uma sensação muito vaga do cheiro e da temperatura do ambiente e de seu corpo” / “um certo gosto na boca” / “pura qualidade de sentir” / “simples átimo” (que pode ser prolongado) / “as letras impressas neste livro as quais, em qualquer um dos instantes, serão a mera apreensão de um simples traço” /”lembranças vagas” / “desejos indiscerníveis” / “sentimentos indiscerníveis de estar mais ou menos bem, ou mais ou menos mal”
“Primeiridade é a categoria que dá à experiência sua qualidade distintiva, seu frescor, originalidade irrepetível e liberdade. Não a liberdade em relação a uma determinação física, pois que isso seria uma proposição metafísica, mas liberdade em relação a qualquer elemento segundo. O azul de um certo céu, sem o céu, a mera e simples qualidade do azul, que poderia também estar nos seus olhos, só o azul, é aquilo que é tal qual é, independentemente de qualquer outra coisa. Mas, ao mesmo tempo, primeiridade é um componente do segundo” tancial e singular vai deixando como pegadas, rastros de nossa existência” (O que é semiótica, p. 50)
“A qualidade da consciência imediata é uma impressão (sentimento) in totum, indivisível, não analisável, inocente e frágil” (O que é semiótica, p. 43)
“Tudo o que esta imediatamente presente à consciência de alguém é tudo aquilo que está na sua mente no instante presente. Nossa vida inteira esta no presente. Mas, quando perguntamos sobre o que está lá, nossa pergunta vem sempre muito tarde” (O que é semiótica, p. 43)
“O sentimento como qualidade é, portanto, aquilo que dá sabor, tom, matiz à nossa consciência imediata, mas é também paradoxalmente justo aquilo que se oculta ao nosso pensamento, porque para pensar precisamos nos deslocar no tempo /…/ A qualidade da consciência, na sua imediaticidade, é tão tenra que não podemos sequer tocá-la sem estragá-la” (O que é semiótica, p. 43)
“Sua vida inteira está aí com você em cada lapso de instante em que você está existindo” (O que é semiótica, p. 44)
“…o primeiro (primeiridade) é presente e imediato, de modo a não ser segundo para uma representação. Ele é fresco e novo, porque, se velho, já é um segundo em relação ao estado anterior” (O que é semiótica, p. 45)
“O que é o mundo para uma criança em idade tenra, antes que ela tenha estabelecido quaisquer distinções, ou se tornado consciente de sua própria existência? Isso é primeiro, presente, imediato, fresco, novo, iniciante, original, espontâneo, livre, vívido e evanescente. Mas não se esqueça: qualquer descrição dele deve necessariamente falseá-lo.
Mas, o que quer isso dizer? Que não existe para nós, adulto, senão a nostalgia de uma experiência de primeiridade? Estamos para sempre fadados à perda irrecuperável desse sabor do viver? Não, em termos. O fato de que essa experiência não possa ser descrita não significa, em primeiro lugar, que não possa ser imaginativamente criada.
Em segundo lugar, e isto é o mais importante, de qualquer coisa que esteja na mente em qualquer momento, há necessariamente uma consciência imediata e conseqüentemente um sentimento. Qualidades de sentimento estão, lá, mesmo que imperceptíveis. Essas qualidades não são nem pensamentos articulados, nem sensações, mas partes constituintes da sensação ou do pensamento, ou de qualquer coisa que esteja imediatamente presente em nossa consciência” (O que é semiótica, p. 45)
“Levantemos, por exemplo, algumas instâncias de qualidade de sentir ao imaginarmos um estado mental caracterizado por uma simples qualidade positiva: o sabor do vinho, a qualidade de sentir amor, perfume de rosas, uma dor de cabeça infinita que não nos permite pensar em nada, sentir nada, a não ser a qualidade da dor. Um instante eterno, sem parte, indiscernível de prazer intenso ou sutil qualidade de sentir quando vamos gentilmente acordando, dóceis, ao som da música.
Tratam-se de estados de disponibilidade, percepção cândida, consciência esgarçada, desprendida e porosa, aberta ao mundo, sem lhe opor resistência, consciência passiva, sem eu, liberta dos policiamentos do autocontrole e de qualquer esforço de comparação, interpretação ou análise. Consciência assomada pela mera qualidade de um sentimento positivo, simples, intraduzível.
Note-se, contudo, que Peirce tem aí a precaução de não confundir a qualidade de sentimento de uma cor vermelha, por exemplo, de um som ou de um cheiro, com os próprios objetos percebidos como vermelho, sonantes ou cheirosos. Conciência em primeiridade é qualidade de sentimento e, por isso mesmo, é primeira, ou seja, a primeira apreensão das coisas, que para nós aparecem, já é tradução, finíssima película de mediação entre nós e os fenômenos. Qualidade de sentir é o modo mais imediato, mas já imperceptivelmente medializado de nosso estar no mundo. Sentimento é, pois, um quase-signo do mundo: nossa primeira forma rudimentar, vaga, imprecisa e indeterminada de predicação das coisas” (O que é semiótica, p. 46)
Secundidade
“relação de dependências entre dois termos” / “energia palpitante que recebe e responde” / “conflito entre esforço e resistência” / “há sempre um elemento de reação ou segundo, anterior à mediação do pensamento” / “choque” / “surpresa” / “luta” / “conflito” / “fricção ente duas coisas” / “a absoluta coação sobre nós de alguma coisa que interrompe o fluxo de nossa quietude, obrigando-nos a pensar de modo diferente daquilo que estivemos pensando, que constitui a experiência” / “agir” / “reagir” / “interagir”
“Secundidade é aquilo que dá à experiência seu caráter factual, de luta e confronto. Ação e reação ainda em nível de binariedade pura, sem o governo da camada mediadora da intencionalidade, razão ou lei” (O que é semiótica, p. 50)
“Há um mundo real, reativo, um mundo sensual, independente do pensamento e, no entanto, pensável, que se caracteriza pela secundidade” (O que é semiótica, p. 47)
“A pedra no caminho, de que nos fala Carlos Drummond de Andrade” (O que é semiótica, p. 47)
“O simples fato de estarmos vivo, existindo, significa, a todo momento, consciência reagindo em relação ao mundo. Existir é sentir a ação de fatos externos, resistindo à nossa vontade. É por isso que, proverbialmente, os fatos são denomidados brutos /…/ Existir é estar numa relação, tomar um lugar na infita miríade das determinações do universo, resistir e reagir, ocupar um tempo e espaço particulares, confrontar-se com outros corpos…” (O que é semiótica, p. 47)
“… para existir, a qualidade tem de estar encarnada numa matéria. A factualidade do existir (secundidade) está nessa corporificação material” (O que é semiótica, p. 47)
“… meras qualidade não resistem. É a matéria que resiste. Por conseguinte, qualquer sensação já é secundidade: ação de um sentimento sobre nós e nossa reação específica, comoção do eu para com o estímulo.” (O que é semiótica, p. 47-8)
“Esperávamos um coisa ou passivamente a tomávamos como garantida, tínhamos a imagem dela em nossas mentes, mas a experiência, intrusa e forasteira, brutalmente empurra aquela idéia para o fundo e nos impele a pensar de modo diferente” (O que é semiótica, p. 49)
“Experiência é o curso da vida. O mundo é aquilo que a experiência nele inculca. E experiência em nós é aquilo que o fluxo de nossa vida nos impeliu a pensar. É por isso que a experiência, o não-ego, o outro constituem-se no verdadeiro pivô do pensamento, aquilo que move o pensar, retirando-o do círculo vicioso do amortecimento” (O que é semiótica, p. 49-50)
“… nossas reações à realidade, interações vivas e físicas com a materialidade das coisas e do outro, já se constitutem em respostas sígnicas ao mundo, marcas materiais perceptíveis em maior ou menor grau que nosso existir histórico e social, circunstancial e singular vai deixando como pegadas, rastros de nossa existência” (O que é semiótica, p. 50)
Terceiridade
“generalidade” / “infinitude” / “continuidade” / “difusão” / “crescimento” / “inteligência” / “signo” / “representação” / “o modo como nós, seres simbólicos, estamos postos no mundo”
“…aproxima um primeiro e um segundo numa síntese intelectual, corresonde à camada de inteligibilidade, ou pensamento em signos, através da qual representamos e interpretamos o mundo” pegadas, rastros de nossa existência. Por exemplo: o azul simples e positivo, é um primeiro. O céu, como lugar e tempo, aqui e agora, onde se encarna o azul, é um segundo. A síntese intelectual, elaboração cognitiva – o azul no ceú, ou o azul do céu -, é um terceiro” (O que é semiótica, p. 51)
“Perceber não é senão traduzir um objeto de percepção em um julgamento de percepção, ou melhor, é interpor uma camada interpretativa entre a consciência e o que é percebido” pegadas, rastros de nossa existência. Nessa medida, o simples ato de olhar já está carregado de interpretação, visto que é sempre o resultado de uma elaboração cognitiva…” (O que é semiótica, p. 51)
“…compreender, interpretar é traduzir um pensamento em outro pensamento num movimento ininterrupto, pois só podemos pensar um pensamento em outro pensamento” (O que é semiótica, p. 51)
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