Benjamin, Ernst e o trânsito entre o reprodutível e o operativo

“Como as mudanças na superestrutura ocorrem muito mais lentamente do que aquelas na infraestrutura, foi preciso mais de meio século para que as mudanças ocorridas nas condições de produção repercutissem nos diversos terrenos da cultura”. Ao resgatar o par marxista que opõe os meios materiais de produção (trabalhadores, máquinas, fábricas) aos aparelhos ideológicos da sociedade (governo, edução, ciência, arte), Benjamin faz mais do que atualizar o pensamento do filósofo socialista. Ele atesta complexidades do economista das utopias de superação do capitalismo, em geral desprezadas nas aplicações mais diretas, muitas vezes simplistas, que durante o século XX gastaram suas potências em nome de supostas políticas sugeridas em suas nem sempre bem entendidas ideias.

 

O conhecido artigo de Benjamin, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, aplica de forma explícita os métodos dialéticos de filósofos como Hegel e Marx ao entendimento dos processos culturais que começam a surgir na passagem do século 19 ao 20. No caso de Benjamin, como formula por exemplo Michel Löwy em Judeus Heterodoxos, não seria impróprio aproximar dialético e dialógico (no sentido de Buber). É conhecido o fato de seu pensamento ser marcado pela divisão entre o messianismo judaico e o interesse no marxismo. Wolfgang Ernst, em Sonic Time Machines, chama esta tensão de messianismo dialético. Há muitas proximidades entre o pensamento da reprodução em Benjamin e o pensamento operativo em Ernst o que, inclusive, releva o quanto há em Benjamin uma preocupação nem sempre lembrada com o sonoro.

 

Tanto em Benjamin, quanto na teoria da mídia em geral, há um privilégio do olhar, resultante de anos de interface entre palavra e imagem na cultura ocidental, marcada por um centralidade da escrita em diálogo com a pintura. Em que pese a importância da música nesta ecologia, o som é dissociado do campo do saber. Livros e imagens adquirem um estatuto de documentos de memória e conhecimento sobre o mundo, enquanto a música é percebida em figuras circulares de conhecimento circular sobre a própria música.

 

A leitura inaugural que Benjamin propõe dos processos culturais resultantes da mecanização da cultura é marcado pelo duplo engajamento entre marxismo e messianismo. Ao longo de seu percurso, ele torna seu pensamento mais complexo que aplicações mais literais do marxismo ao entendimento do modo como as automatizações da indústria fixam-se na vida urbana a ponto de escapar da esfera econômica, justamente por não se prender aos modos canônicos de ler o filósofo do capital que se tornaram populares no início do século 20 — em que pesem a riqueza de leituras complexas e desdobramentos originais, o que também fica claro em Judeus Heterodoxos.

 

O surgimento de máquinas mecânicas começam a transformar os modos de transmissão de linguagem, resultando em uma cultura a partir de então produzida por meio de aparelhos cada vez mais sofisticados. É o tempo dos gramofones, telégrafos, telefones, rádios, câmeras fotográficas e — espécie de síntese das práticas de multiplicação de imagens e sons em curso — do cinema que rapidamente vai tornar-se uma das principais formas de expressão do século. Só a partir da segunda metade do século, com popularização um pouco mais adiante, é que surgirão tecnologias como a televisão, a Internet e os jogos de computador, que aos poucos vão assumindo este lugar de protagonismo. Estas passagens implicam em uma leitura da história das mídias que desafia o entendimento a partir dos ciclos tecnológicos analógico, eletrônico e digital que a bibliografia sobre o tema normalmente formula.

 


Vênus de Milo

 

Entre pensamentos visionários e pensamentos que refletem a mentalidade de uma época (relacionados especialmente a um entendimento absoluto da tensão entre artesania e imagens técnicas incapaz de prever o retorno do sentimento aurático em relação a certas tecnologias que envelhecem tornando-se objetos de desejo vintage), o artigo estabelece as premissas que permitem entender esta sucessão de acontecimentos na maneira como eles modificarão as linguagens. Uma das riquezas do texto de Benjamin é seu enfoque dialético, que deixa as contradições correrem por suas linhas, ora reverberando a utopia marxista que sonha com a superação da economia de mercado por meio de linguagens divergentes, ora estabelecendo as premissas para um entendimento mais complexo, menos linear, das formas como os fatos desenrolam-se.

 

Exemplo da mirada utópica aparece na constatação de um desaparecimento do lugar especial muitas vezes reservados a conceitos como autoria, originalidade ou criatividade:

 

“A dialética dessas condições não é menos perceptível na superestrutura que na economia. Por isso, seria um equívoco subestimar o valor dessas teses para a luta política. Elas deixam de lado conceitos consagrados, como criatividade, genialidade, validade eterna e mistério, conceitos cujo emprego incontrolado (e atualmente de difícil controle) conduz à elaboração do material fático em sentido fascista. Os novos conceitos que introduzimos na teoria da arte distinguem-se dos anteriores porque não podem ser usados para objetivos fascistas. Em compensação, podem ser úteis à formulação de exigências revolucionárias.”

 

Exemplo do entendimento dos encadeamentos que fazem com que durante o século 20 as tecnologias tornem-se obsoletas e sejam substituídas com velocidade crescente, numa afirmação das necessidades da economia de mercado:

 

No decorrer de longos períodos históricos, modifica-se não só o modo de existência das coletividades humanas, mas também a sua forma de percepção. O modo como se organiza a percepção humana, o meio pelo qual ela se realiza, não depende só da sua natureza, mas também da história.”

 

Benjamin vai generalizar este raciocínio, na forma de uma importante inversão dos debates que costumam surgir, quando aparecem novas linguagens, a respeito do estatuto que elas assumem num determinado contexto. Seu exemplo é a fotografia, em seguida o cinema. “No passado, gastou-se muito raciocínio discutindo-se inutilmente se a fotografia era ou não uma arte, sem que se colocasse previamente a questão de que sua descoberta poderia vir a modificar a própria natureza da arte. Hoje os teóricos do cinema cometem o mesmo erro.”

 


Lascaux

 

Há, neste entendimento de que a linguagem ganha feições antes inexistentes em decorrência dos diferentes dispositivos que a cultura humana segue inventando, um posição sobre o emaranhando entre linguagem e tecnologia que considera o maquínico como capaz de modelar o humano. Nisto, o Benjamin das teses sobre história ou da pesquisa sobre as galerias desafia seus próprios pressupostos (dialética), conforme embute seu engajamento nos exercícios de memória que tanto lhe interessam. Há um certo elo entre um pensar prospectivo, que estica o presente na direção dos futuros que ele sugere, e um olhar retrospectivo, que sabe que o entendimento do passado faz presente.

 

Por este aspecto, Benjamin pode ser tido com um pioneiro do que posteriormente veio se chamar arqueologia das mídias (o que a presença pontual mas precisa em momentos chave de um livro como o já citado Sonic Times Machine, de Ernst, comprova). Tornou-se comum, nos estudos de comunicação e linguagem, o recurso a esta atitude de atenção ao passado remoto, num momento em que o presente parece se esticar além de seus limites, fazendo o tempo tornar-se veloz e pouco afeito às minúcias da memória. No artigo An archaeology of Media Archaeology, Huhtamo e Parikka afirmam que, por mais diferentes que sejam as abordagens sobre novas mídias, elas “com frequência compartilham uma desconsideração pelo passado”. Para eles, “os desafios apresentados pelas culturas midiáticas contemporâneas são complexos, mas o passado tem sido considerado como tendo pouco a contribuir para seu desentrelaçamento”.

 

Em sentido inverso, a arqueologia das mídias considera que o passado pode contribuir muito e, em alguns casos, como em Ernst, percebe o deslocamento operativo entre tempos, que torna certos passados presentes, na medida em que certas mídias em funcionamento ressoam outros tempos no momento de seus funcionamento. São como que índices de outra época reverberando no atual.

 

Um dos métodos que estrutura as práticas de arqueologia das mídias poderia ser traduzido, com alguma liberdade, por “encarar com frieza” ou “mirar de forma gélida”; numa tradução mais direta, “olhar frio”. Em Media Archaeology as a Transatlantic Bridge, Wolfgang Ernst relaciona esta maneira de “exercitar um exame próximo das mídias técnicas, na forma como elas operam, mantendo um distanciamento hermenêutico do olhar”, com a “paixão da distância que Friedrich Nietzche certa vez declarou ser seu método de análise”.

 

No texto introdutório ao livro, Jussi Parrika refere-se a Kittler e ao livro Cool Conduct: The Culture of Distance in Weimar Germany, ao estabelecer precedentes desta abordagem que compartilha muitos dos seus princípios com cientistas e engenheiros: “Ela é orientada a objetos de uma maneira que lembra a pesquisa das culturas materiais e esta interessada na fiscalidade das mídias técnicas, incluindo a computação” (Parikka, 2013, 8). Em uma das entrevistas que compõe o DVD We Shall Live in The Memories of Others, Vilém Flusser aborda a passagem do discursivo ao computacional de forma que permite inclui-lo, também, entre os pensadores que estabeleceram premissas para este tipo de abordagem das mídias engajado no entendimento de suas materialidades e princípios lógicos.

 


Eugene Atget

 

Encarar com frieza a fotografia
Em Let There Be Irony, Ernst trata da passagem da pintura à fotografia, procurando tornar explícito o gesto arqueológico que desaparece na passagem da gravura à fotografia descrita por Benjamin: “O famoso ensaio de Walter Benjamin A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1936) é baseado no paradigma fotográfico: conforme Benjamin, através de sua disseminação reprodutiva, a imagem perde sua aura. De muitas formas, a arte da gravura antecipou este efeito. A gravura em si foi por bastante tempo percebida como uma prática arqueológica baseada na associação entre cavar e escrever (graphein em Grego). Em sua história Gravure en bois (1766), o xilogravurista francês Jean-Martin Papillon conectou o graphein com a atividade física de perfurar e escavar em todos os tipos de superfície. Gravar pode, então, ser ligado ao ato da escavação arqueológica — arqueologia das mídias, literalmente”.

 

Papillon Traite 1766

 

“No período Barroco, a pesquisa em antiquário e arqueológica (o modo do escavar) estavam conectados de perto com a performance tecnológica ao encontrar evidências visuais em forma impressa. Bann também enfatiza o papel das mudanças de mídia no início do século dezenove como uma força motriz no desenvolvimento da [metodologia da] representação histórica, comparando impressos à veículos para evocar o passado com o novo meio de gravura da litografia, empregado na representação de monumentos antigos. A litografia já apontava para a estética do diorama e, consequentemente, da fotografia, ambos promovidos por Daguerre. A diferença entre discours subjetivo e historie quase objetiva, na representação do passado, torna-se uma função de suas performances midiáticas.”

 

“A questão crucial para a arqueologia das mídias, então, reside em se, no emaranhado entre tecnologia e cultura, o tipo novo de imaginação histórica que emergiu foi um efeito das novas mídias ou se estas mídias foram inventadas porque a configuração epistemológica da época as demandou. Ou, colocando de outra forma, houve uma progressão evolutiva suave da xilogravura, à litogravura e à fotografia, ou houve uma quebra um tanto dramática como resultado da diferença entre tecnologias midiáticas genuínas, como a fotografia, e tecnologias culturais anteriores? Existe uma diferença epistemológica entre a luz conforme é pintada sobre a tela para criar a ilusão de história miticamente iluminada de dentro, como no quadro de Joseph Gandy Merlin’s Tomb ou nas Ruins of Holyrood Chapel de Daguerre, datadas de 1824, e a luz fotográfica como “lápis da natureza” (para citar William Henry Fox Talbot). O efeito pictórico ainda é da ordem da pintura e, portanto, essencialmente mediado pela ação humana, enquanto o efeito de real na fotografia é tecnologicamente automatizado e a intervenção humana reduz-se ao momento da decisão temporal (quando disparar o obturador da máquina).”

 

TombMerlin
The Tomb of Merlin

 

Entre os autores que tratam de fotografia, Ernst pode ser colocado mais perto dos que atribuem um peso incomum aos mecanismos do dispositivo fotográfico (que se torna um intricado dispositivo de controle, extendendo ao mundo material o pressuposto de que a sociedade forja aparelhos de ideologia que cristalizam o estado das coisas). Não é unanime na crítica de fotografia o pressuposto de que o efeito de realidade do fotográfico seja algo extra-humano. Se, por um lado, a precisão das imagens de matriz fotográfica (a fotografia, mas também o cinema) vão resultar em uma vertente que atribui à imagem um componente realista indissociável de seu caráter indexical, por outro lado, muitos autores vão apontar como o enquadramento ou a montagem implicam em “toques” humanos que tensionam estas supostas maduras “forjantes” de imagens.

 

Neste aspecto, Flusser, nas mesma entrevista citada acima, aponta a impossibilidade dos seres humanos usarem máquinas sem colocar seu programa em operação, o que tornaria impossível entender a fotografia senão como resultado de possibilidades inscritas automaticamente no projeto tecnológico da câmera (algo que ele desenvolveu de maneira mais extensa em Filosofia da Caixa Preta). Mas o próprio Flusser parece perceber a rigidez de seu programa, e mais adiante em sua carreira começa a trabalhar com os conceitos menos claustrofóbicos de “complexidade sistêmica” (um tabuleiro de xadrez tem um programa maleável, muito aberto; trata-se de um sistema que estimula um enorme quantidade de combinações que sugere a sensação de infinita variabilidade e invenção) e “complexidade funcional” (uma máquina fotográfica tem um programa mais fechado; o clique cristaliza o mundo visível em formas perspectivadas). Sempre seria possível argumentar, no sentido contrário da leitura de Flusser, que as milhares de fotografias feitas pela multiplicidade incrível de fotógrafos que transformam esta linguagem numa das mais deslumbrantes e ricas dos tempos recentes, sugere que as câmeras tem uma riqueza e variabilidade equivalente, senão maior que a sugerida pelo número de partidas sugeridos em um tabuleiro de xadrez.

 

Couchot constrói a figura do sujet-on — conforme o trecho abaixo de O sujeito no ciberespaço, de Arlindo Machado — de maneira que parece relativizar o contraponto extremo entre a posição realista e as abordagens que colocam ênfase na montagem:

 

“Edmond Couchot é o pensador que mais se aproximou dessa síntese e se uma teoria geral dos modos de enunciação em ambientes digitais pode ser hoje formulada, ela deverá ser buscada em alguns pontos fundantes de seu La technologie dans l’art. O conceito-chave de Couchot para se entender o modo particular como a subjetividade é construída no ciberespaço é o de sujeito-SE (sujet-ON, em francês). Fazendo acoplar à palavra sujeito o pronome indefinido on (equivalente a se em português, como em on dirait que…/dir-se-ia que…), Couchot busca exprimir uma outra experiência de subjetividade, aquela que deriva não de uma vontade, de um desejo, de uma iniciativa de um sujeito “real” (seja ele, novamente, um autor, um espectador ou um “narrador” pressuposto, interno à diegese), mas dos automatismos do dispositivo técnico, “questão chave – explica ele – num momento em que o numérico parece, aos olhos de muitos, desapossar o criador de toda singularidade e de toda expressividade e reduzir o ato criador aos puros automatismos maquínicos” (Couchot, 1998: 8). O conceito foi inspirado em Merleau-Ponty (1999: 322) – “a percepção existe sempre no modo do se” – mas foi apropriado por Couchot numa perspectiva bastante particular, visando dar conta das relações existentes entre a subjetividade e a automatização do gesto enunciador. A idéia de automatização vem evidentemente de Simondon (1969: 120s), o primeiro a pensar o acasalamento homem-máquina e a transferência de parte dos procedimentos produtivos à tecnologia”.

 

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The Ruins of the Holyrood Chapel

 

+ Um fenômeno que permite problematizar o tema sem abrir mão do engajamento na materialidade das imagens técnicas são as anamorfoses.

 

As materialidades do som
Uma das ênfases dos estudos de Ernst é o som. A possibilidade de gravar e transmitir vozes, que surge no século XIX, é a maneira espantosa que permite ouvirmos pessoas espacial ou temporalmente distantes. Um efeito assombroso (como proposto em Die Scheinbarkeit des “Lives”) que provoca mudanças significativas nos processos de mediação, e tem conseqüências amplas. O som gravado torna-se fonte de acesso à acontecimentos e culturas que até então só podiam ser preservados por meio de um recontar discursivo. O som, especialmente a voz, torna-se o conteúdo distante e precários das primeiras transmissões. E a busca por melhorar este processo inaugura a teoria da informação de base numérica e aproxima de vez os processos de comunicação da engenharia das máquinas capazes de codificar, enviar, receber e decodificar pacotes de dados.

 

A seguir, um trecho de Media Archaeography que mostra as implicações epistemológicas do surgimento do som gravado:

 

“Em contraste com dois mil anos de história basicamente escrita, o advento das mídias de gravação de áudio quase imediatamente levaram a projetos genuinamente baseados em mídia como os arquivos músico-etnológicos em gramofone estabelecidos em Vienna e Berlin por volta de 1900. Mas os tesouros da cultura são apenas um aspecto deste tipo de arquivo de mídia, porque estas gravações contém — e, portanto, memorizam — um mundo de sinais que opera para além e abaixo do simbolismo cultural pretendido pelos humanos envolvidos. A arqueologia das mídias (como a membrana do microfone) desapaixonadamente presta atenção nas qualidades subconscientes das mídias técnicas. No momento em que um cantor de épicos canta em um dispositivo de gravação da época, dois regimes diferentes trombam conforme a performatividade humana é confrontada com a as operações algorítmicas. Embora a análise filológica das maravilhas da poesia oral (os épicos de Homero na antiguidade, o guslari Sérvio no presente) permaneça no escopo da lógica das tecnologias culturais (escrita alfabética e notação musical), a análise mídio-arqueológica, através de rápidos Fourier calculado por computação, da fala para além das unidades elementares do que pode ser expresso pelas letras (vowels, consoantes) permite acesso à dimensão material (o mundo físico) de um momento cultural.”

 

Em Ler o livro do Mundo, ao discutir a teoria da linguagem de caráter mimológico que Benjamin formula ao mesmo tempo que desvia do pressuposto mítico que certas formulações mais canônicas do tipo adotam, Marcio Seligmann-Silva a certa altura aponta o papel que a música vai adquiri neste contexto:

 

“”Benjamin não exita em conectar Ritter aos místicos, sem que isto soe como uma condenação, o que, em última instância, revela — novamente — o seu desejo de abarcar o âmbito mimético d experiência normalmente atrelado apenas à tradição da mística da linguagem sem, no entanto, sucumbir ao misticismo /…/ Mais ainda, nesta teoria Ritter, como nota Benjamin, afirma que “toda imagem é apenas imagem escrita” (I 388), o que revela a profunda afinidade desta sua teoria com a teoria barroca da alegoria. Benjamin conclui então que Ritter não apenas deu um fecho à teoria romântica da alegoria como também revelou desse modo “um documento inegável da afinidade do barroco com o romantismo” (I 388). A mais íntima relação do barroco com o romantismo se estabelece através dessa concepção do mundo como escritura — como uma escritura avant la lettre. Benjamin ainda desdobrou a consequência de uma tal teoria: ela eleva a música ao papel de última linguagem universal após a torre de Babel; “a música se dissolveu nas línguas /…/ Canto é linguagem dupla”” (p.91).

 

Este aceno à música como linguagem universal aproxima Benjamin de Ernst por outro ângulo. O conceito de sonicidade, desenvolvido de forma mais longa em Sonic Time Machines, atribui às ondas hertzianas e seu caráter de tempo em ato uma capacidade de compreensão sônica do mundo. Vale observar que este conceito de sonicidade não iguala sonoro e sônico. Pelo contrário, o sônico está mais próximo do computacional, como forma de calcular o mundo e interpretar as coisas através do olhar duro dos algoritmos. Em Sonic Time Machines, esta dimensão não sônica da sonicidade aparece em muito momentos, mas a citação a seguir tem um interesse em particular:

“O termo Grego mousiké abrangia não apenas a articulação musical em sentido estreito, mas também a dança e a poesia. A operação essencial para criar um arquivo de tais artes (‘baseadas-em-tempo’) em movimento, claro, é a gravação” (p. 117)

 

Em Media Archaeography Ernst antecipa um pouco dos temas que vai desenvolver mais longamente no livro citado, estabelecendo um contraponto entre uma percepção historiográfica que entende as vozes do passado como algo que renasce midiaticamente no presente e uma percepção midiarqueológica que encara de forma técnica as mídias operativas:

 

“A leitura próxima e microfísica do som, em que as materialidades da gravação em si tornam-se poéticas, dissolve qualquer unidade arquivística semanticamente significativa em blocos discretos de sinais. Ao invés de aplicar hermêneuticas musicológicas, o arqueólogo das mídias suprime a paixão de “alucinar” vozes quando ele ouve voz gravadas /…/ A análise mídia-arqueológica será recompensada pela doçura da voz humana.”

 

Trata-se de uma percepção computacional, na medida em que opera processos algorítmicos. Em Sonic Times Machines, Ernst torna mais explícito este ponto-de-vista, mostrando que o olhar frio da arqueologia da mídia refere-se a uma episteme não-humana:

 

“Restaurar ondas acústicas armazenadas para som efetivo não demanda imaginação retórica; mas, ao contrário, demanda um olhar hermeneuticamente distante, uma exterioridade de interpretação que apenas a estética de um scanner técnico pode proporcionar” (p. 127).

 

O som tem se tornado cada vez mais central na cultura contemporânea. O fenômeno do mp3 e da distribuição digital de música parece vir produzindo efeitos na cultura contemporânea equivalentes ao que o cinema obteve no século XX. É claro que a paisagem midiática atual é mais diversificada, o que dificulta um protagonismo do mesmo tipo. Mas, assim como o cinema moldou o imaginário de gerações, hoje as pessoas parecem construir parte de seu universo simbólico através da escuta em shuffle de músicas armazenadas em discos rígidos ou na nuvem sem o menor resquício dos tipos de organização impostos pelos formatos vinil e CD. Mesmo a arte contemporânea tem demonstrado interesse pela escuta produzida pelo mundo dos mp3, como por exemplo no projeto em que Cory Arcangel comprime 666 vezes um arquivo com a música “The Number of the Beast”, do Iron Maiden link .

 

Mas, ao contrário de autores como Kahn e Ikoniadou, não é possível considerar este retorno do som como uma virada sônica. Trata-se, de fato, de uma ida ao multisensório. Sonic Time Machines é muito claro em dissociar do som esta epistemologia da sonicidade que surge conforme a galáxia de Gutenberg vai se dissipando em consequência do modo como o digital vai produzindo novas formas de percepção (conforme discutido por Basbaum em artigo no livro Audiovisual Experimental). Está em curso um movimento de reequilíbrio dos sentidos que, de fato, está sugerido nestes trechos menos conhecidos em que Benjamin acena para o sonoro, está formulado no desvio que Flusser e, especialmente Kittler, fazem rumo ao som, e está sistematizado no pensamento de Ernst e Basbaum.

 

Mais informações sobre este universo aparecem em livros como
MP3: The Meaning of a Format, de Jonathan Sterne, ver também o artigo sobre o tema publicado em  http://sterneworks.org/mp3.pdf ou o documentário de Alex Winter sobre a criação e o colapso do Napster.

 

Sobre a polêmica em torno do Napster vale conhecer também a entrevista que o Metallica deu para a Playboy americana, quando o processo da banda contra a empresa de tecnologia estava em andamento,

 

Como exemplo de que o estado das coisas mudou desde então, vale conferir a maneira como Madonna encaminhou o “vazamento” de versões preliminares de algumas músicas de seu novo disco, em matéria na revista Rolling Stone.

 

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