Um dos aspectos subjacentes ao entendimento dos conceitos de multimídia e intermídia refere-se ao debate sobre os processos de mediação, e uma certa centralidade difusa que o conceito de mídia assume em diversas áreas de estudo. No artigo ainda inédito Radical Mediation, Richard Grusin (agradecimentos mais que especiais pela generosidade em compartilhar o texto) trata do tema da seguinte maneira:
The question of mediation has become one of the central intellectual problems in the late twentieth and twenty-first centuries, in part because of the extraordinary acceleration of technology, the rampant proliferation of digital media technologies that sometimes goes under the name of “mediatization.” Despite widespread theorizing about media prompted by the intense mediatization of the past several decades, John Guillory has contended “that the concept of mediation remains undertheorized in the study of culture and only tenuously integrated into the study of media.
Em certo sentido, este aparente paradoxo é resultado da maneira como o campo da comunicação se constitui, apoiado na ideia de que os processos de comunicação são práxis, e por isso resistentes à consolidação num campo epistemológico estável. Um pouco como Trevor Paglen diz da geografia, este lugar inicialmente disforme constitui uma força a posteriori.
Geography is a curiously and powerfully transdisciplinary discipline. In any given geography department, one is likely to find people studying everything from the pre-Holocene atmospheric chemistry of northern Greenland to the effects of sovereign wealth funds on Hong Kong real estate markets, and from methyl chloride emissions in coastal salt marshes to the racial politics of nineteenth-century California labor movements. In the postwar United States, university officials routinely equated the discipline’s lack of systematic methodological and discursive norms with a lack of seriousness and rigor, a perception that led to numerous departments being closed for lack of institutional support. The end of geography at Harvard was typical of what happened to the field: university officials shut down its geography department in 1948, as CUNY geographer Neil Smith tells it, after being flummoxed by their “inability to extract a clear definition of the subject, to grasp the substance of geography, or to determine its boundaries with other disciplines.” The academic brass “saw the field as hopelessly amorphous.” But this “hopeless amorphousness” is, in fact, the discipline’s greatest strength.
No matter how diverse and transdisciplinary the field of geography may seem, and indeed is, a couple of axioms nevertheless unify the vast majority of contemporary geographers’ work. These axioms hold as true for the “hard science” in university laboratories as for human geographers studying the unpredictable workings of culture and society. Geography’s major theoretical underpinnings come from two related ideas: materialism and the production of space.
Não é objetivo deste post, mas seria possível discutir até que ponto certos tipos de saber que, numa época de reverberação dos pressupostos da modernidade, soavam deslocados ou fracos, acabaram se revelando capazes de antecipar aspectos da contemporaneidade, um pouco da forma com que Jacques Le Rider considera que o deslocamento que manteve a modernidade vienense relativamente à margem do modernismo europeu mostrou-se, a longo prazo, conseqüência de características que podem ser consideradas como um tipo de pós-modernidade avant la lettre.
Este jogo de defasagens leva de volta ao tema dos sentidos do modernismo paulista em uma São Paulo que sofre um processo de urbanização de ritmo diverso das metrópoles européias, conforme apontada em http://www.eventualidades.net/pontes/. Não é o momento para voltar a esta questão a partir de um outro recorte, mas quando for oportuno, o artigo Figuras do Moderno (Possível), de Annateresa Fabris, permite este olhar retrospectivo e deslocado, que volta ao modernismo desinvestido dos pressupostos de leitura que os próprios modernos estabeleceram a respeito de seu tempo e suas obras. A modernidade de um lado, fenômenos como a transdisciplinaridade e a imaterialidade de outro, se inserem num conjunto de processos que parecem forjar uma consciência cada vez mais aguda sobre o papel dos fenômenos de linguagem na vida humana. Grusin registra a face especular deste processo, presente no entendimento cada vez mais amplo dos processos de mediação:
As I argue below, mediation operates not just across communication, representation, or the arts, but is a fundamental process of human and nonhuman existence. This affective mediation of collective human and nonhuman assemblages operates independently of (and often more efficaciously than) the production of knowledge. Like the way media operate affectively, mediation must also be understood ontologically as a process or event prior to and ultimately not reducible to particular media technologies. Mediation operates physically and materially as an object, event, or process in the world, impacting humans and nonhumans alike. Radical mediation participates in recent critiques of the dualism of the Western philosophical tradition, which make up what I have elsewhere called the nonhuman turn in twenty-first-century studies. Indeed, as I suggest in the essay’s final sections, radical mediation might in some sense be understood as nonhuman mediation.
I derive the term radical mediation from the concept of radical empiricism set forth by William James in Essays in Radical Empiricism, published in 1912, two years after his death.9 James’s radical empiricism has been redeployed in recent books by Adrian Mackenzie and Anna Munster in order to make sense of the technical and embodied experience of our current media environment, what Mackenzie calls “wirelessness” and Munster characterizes as the “anaesthesia of networks.” Both books start from James’s paradigmatic definition of radical empiricism in “A World of Pure Experience”:
To be radical, an empiricism must neither admit into its constructions any element that is not directly experienced, nor exclude from them any element that is directly experienced. For such a philosophy, the relations that connect experiences must themselves be experienced relations, and any kind of relation experienced must be accounted as ‘real’ as anything else in the system.
In developing the concept of radical empiricism James means to reject both the empiricism or realism that starts with objects or the real in itself and the rationalism or idealism that sees the real as an imperfect manifestation of a universal logos or spirit.
Para situar um pouco melhor este diálogo entre o conceito de mediação radical e o conceito de empirismo radical, é preciso abrir um parêntesis para dar conta de uma série de coisas. A primeira delas é o surgimento de um tipo de pensamento filosófico interessado nos fenômenos e acontecimentos, e o fato bastante significativo de que James usa a palavra sistema para tratar do jogo de relações entre real e experiências que ele articula.
Sistema.
A palavra sistema vai ser central nas teorias matemáticas da comunicação propostas por Shannon e Weaver, assim como em seus desdobramentos posteriores que levam à constituição do campo da cibernética.
Em certo sentido, este é o momento em que o entendimento de que as práticas de comunicação acontecem entre humanos e não humanos começa a ganhar contornos mais claros. Deste ponto-de-vista, seria possível pensar que estamos diante dos pensamentos que deslocam para um campo mais amplo o entendimento de que as máquinas interferem na maneira como culturas e sociedades funcionam, formulados a semana passada a partir de Benjamin e das interpretações do processo de urbanização que consideram infra-estruturas como as pontes determinantes de um novo modo de viver na cidade.
Cidade e comunicação estão ligados, vale voltar a Sennet já mencionado semana passada:
Em geral, a forma dos espaços urbanos deriva de vivências corporais específicas a cada povo – este é o meu argumento em Carne e pedra. Nosso entendimento a respeito do corpo que temos precisa mudar, a fim de que em cidades multiculturais as pessoas se importem umas com as outras. Jamais seremos capazes de captar a diferença alheia enquanto não reconhecermos nossa própria inaptidão. A compaixão cívica provém do estímulo produzido por nossa carência, não pela boa vontade ou retidão política /…/ A história pagã a respeito dessa verdade antiga converge para a experiência dos corpos nas cidades. Em Atenas, a ágora estimulava fisicamente as pessoas, ao preço de privá-las de um discurso mutuamente coerente; a Pnix garantia a continuidade do discurso e experiências de narrativa lógica, mas ali os indivíduos se tornavam vulneráveis à retórica. As pedras desses dois espaços urbanos impunham um estado de alternância, pois cada um deles era fonte de uma insatisfação que só o outro resolvia – o que gerava ainda mais inquietação”
trecho de “Corpos Cívicos”, de Richard Sennet, texto publicado em Carne e Pedra – O corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro, Edições BestBolso, 2008
Mas também há algo que vai além deste elo, e abre esta semana uma outra brecha para pensar o surgimento dos processos multimídia / intermídia. Não o corpo envolto por estruturas, mas o corpo que envolve pensamentos. O corpo como abrigo da linguagem, e a linguagem como interface entre corpo e mundo (incluíndo os processos de percepção como uma parte dos processos de linguagem, os sentidos como inputs do corpo, para falar com a cibernética e com McLuhan).
Este processo em que a linguagem começa a ganhar espessura, ao mesmo tempo que certos processos de mecanização mudam sua tessitura, não deixa as pessoas incólumes. Benjamin é mais uma vez útil, neste sentido. Em “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolay Leskov”, ele considera que se trata de uma passagem do mundo da sabedoria ao mundo da informação. Benjamin é um dos principais comentadores dos movimentos culturais que marcam a passagem do século XIX ao XX. No já citado “O narrador”, ele opõe a narrativa ao romance, estabelecendo um elo entre a narrativa e um saber ligado à participação do narrador na experiência do que relata, e o romance à prática da transmissão de informação:
“O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los”. (Benjamin, 1996: p. 201)
Isso acontece porque a narrativa remonta à tradição oral, e se constitui enquanto uma forma de saber sem compromisso com o “ensinamento”. Já o romance consolida-se após a invenção da imprensa, comprometido com a transmissão de informação, conforme desenvolvido a seguir:
“O romance, cujos primórdios remontam à Antiguidade, precisou de centenas de anos para encontrar, na burguesia ascendente, os elementos favoráveis a seu florescimento. Quando esses elementos surgiram, a narrativa começou pouco a pouco a tornar-se arcaica; sem dúvida, ela se apropriou, de múltiplas formas, do novo conteúdo, mas não foi determinada verdadeiramente por ele. Por outro lado, verificamos que com a consolidação da burguesia — da qual a imprensa, no alto capitalismo, é um dos instrumentos mais importantes — destacou-se uma forma de comunicação que, por mais antigas que fossem suas origens, nunca havia influenciado decisivamente a forma épica. Agora ela exerce essa influência. Ela é tão estranha à narrativa como o romance, mas é mais ameaçadora e, de resto, provoca uma crise no próprio romance. Essa nova forma de comunicação é a informação” (Benjamin, 1996: p. 202).
Peirce e sua arquitetura filosófico-semiótica também merecem ser considerados, neste contexto, pois se trata de um pensamento que ao invés de temer os efeitos arrasadores dos processos não-humanos sobre a vida das pessoas procura formular um campo de relações que destitui o homem de sua centralidade, e assim formula uma ecologia radical dos processos de mediação. http://www.eventualidades.net/signos/.