Sábado fui moderador da mesa “A influência das artes na música pop“, com Agnaldo Farias, Leo Felipe e José Aguilar. O debate aconteceu no contexto da exposição David Bowie, com 47 figurinos, trechos de filmes e shows ao vivo, videoclipes e fotografias. É um assunto infinito e cheio de possíveis recortes. A canção pop ocupou um lugar bastante grande no imaginário do século XXI, e isso significa que, entre artistas que cresceram ouvindo hits e músicos que produziram para galeria, há um escopo diversificado de conexões. Em Alta Fidelidade, Nick Hornby (o escritor que representa a essência do trânsito entre literatura e cultura pop) coloca na voz do personagem principal uma reflexão curiosa. Os pais que se preocupam com a quantidade de violência a que os filhos são expostos no cinema e na TV deveriam ficar atentos a uma influência cultural aparentemente menos problemática, a música pop: ele considera sua vida afetiva desastrosa um eco das melodias agradáveis que embalavam histórias de relacionamentos rompidos e amores estilhaçados, nas letras das canções ouvidas repetidamente durante toda a adolescência.
Músicas são marcantes na vida de todo mundo, para além do universo de personalidades obsessivas como os personagens de Hornby (que descreve com humor e sensibilidade o cotidiano de adultos perturbados por paixões desproporcionais por times de futebol fracassados, ou por cantores obscuros que encerram carreiras de forma misteriosa, depois de entrarem em banheiros de casas noturnas minúsculas posteriormente convertidas em mecas da estranha busca pelo contato com um ídolo pouco provável). O palco e a música são parte do imaginário das artes visuais desde o final do século XIX, como é possível perceber com a presença das dançarinas de can-can no imaginário impressionista.
Ou a relação entre o boogie-woogie e a obra de Mondrian.
O diálogo ganha densidade em experiências de visual music, em que a relação entre imagem e som é estrutural, e assume novas facetas durante o século. Basta pensar em experiências como Exploding Plastic Inevitable, ou na relação intensa entre o DIY punk e processos como a eletrônica de garagem (percursora dos formatos de circuit bending atualmente em destaque em festivais ao redor do mundo, e mesmo em exposições do grande circuito como a documenta de Kassel), a construção de dispositivos de exibição audiovisual que ampliam os formatos do chamado cinema de galeria ou o diálogo fértil entre o mundo do design, da moda e das artes exibido em fanzines e flyers. Há uma arqueologia bastante completa destas intersecções, na exposição DIY – Die Mitmatch Revolution.
A proximidade temática, ou a referência à presença de artistas visuais no circuito de música (e vice-versa) é um aspecto evidente do entendimento do trânsito entre pop e artes. Mas a questão vai muito além desta percepção inicial, sugerida nos discursos sobre o trânsito de artistas por gêneros e linguagens, ou do surgimento de formatos mistos, sob influência da experiência de Andy Warhol com o Velvet Underground ou das premissas do grupo Fluxuscom formatos que cruzaram pop e experimental de forma intensa. Basta pensar em Laurie Anderson, no Beuys de Sonne statt Reagan, no diálogo recente entre Yoko Ono, Kim Gordon e Thurston Moore, em Yokokimthurston ou exemplos mais próximos como Ptyx, de José Wagner Garcia e Wilson Sukorski, e o Poemix (Cid Campos, Lenora de Barros, João Bandeira e Walter Silveira). No catálogo da exposição Rock-Paper-Scissors, uma das coletivas mais importantes sobre o universo que cruza as artes e a música pop, realizada na Kunthaus Graz, Diedrich Diedrischsen aponta relações muito mais estruturais entre a maneira de criar uma canção e procedimentos das artes visuais “pop music has its reference point in the studio recording. This is what is worked and polished, cut and assembled as is traditionally done with objects of the visual arts. It is a kind of sculptural work performed on the phonographic sound object (layering of audio tracks in space rather than sequential music-making in time). Techquines related to those of photo editing are also employed”. É neste universo de formas equivalentes de operar com a linguagem que a conversa entre pop e artes visuais pode ser pensada com uma consistência que vai além do meramente constatativo, da descrição do fluxo de músicos pelo circuito das artes visuais ou de artistas pelo universo pop. Há semelhanças de pensamento que vão além dos circuitos cruzado, que só surgem quando se começa a levar em conta como as linguagens operam neste universo de registros cruzados e procedimentos mais equivalentes do que se suspeita. Antes de passar a palavra para os participantes da mesa, que certamente vão aprofundar estes temas muito mais do que o permitido nesta fala de abertura, gostaria de deixar a platéia com um trecho do clipe de High Heels on the Moon, da artista japonesa Sputiniko, um exemplo recente dos caminhos férteis que tem sido apontados pelos cruzamentos estruturais entre formas de pensar música, arte e design.