publicado originalmente no catálogo online da mostra de artistas residentes do LABMIS 2012 http://bit.ly/19vxTiE
microscapes, instalação de Aline X, Felipe Turcheti, Pedro Veneroso e Vanessa de Michelis, propõe um mapeamento incomum. Processos que o olho só acessa através de instrumentos que aumentam sua potência, convertidos em paisagens audiovisuais em que um microscópico amplia recortes em miniatura de materiais tão diversos quanto inesperados. Um jogo de escalas entre o que é visto a olho nu e o que só é possível enxergar por meio de aparelhos.
Esta passagem por várias escalas de visibilidade é um procedimento que desfaz com sagacidade o desejo de mapeamento integral recorrente na cultura contemporânea. A instalação organiza modos de ver e movimenta aspectos do mundo imagético relacionados com dimensões diferentes das que o olhar costuma apreender. Ao contrário de tecnologias recentes que pretendem recriar com precisão etnográfica estatísticas sobre o mundo, ou modelar com precisão inigualável mapas tridimensionais hiperrealistas, a obra exposta no MIS sugere um relacionamento com aspectos mais sutis do universo que nos cerca.
Ao invés da precisão categórica, microscapes opta por configurações menos ansiosas pela exatidão. Assim, transfere um tipo de positividade científica — que ficou em desuso por algum tempo, mas parece retornar a reboque de sistemas que permitem coletar dados cada vez mais detalhados sobre todo e qualquer tipo de fenômeno — para um espaço menos estável, onde as relações entre os seres humanos e as substâncias que os rodeiam revelam-se poéticas, fracionadas, lacunares, volúveis. A metodologia proposta remete a experiências como a do Colégio de Patafísica, criado em 1948 pelo OULIPO, em contraposição irônica às academias de arte e ciência’.
Na época em que o grupo de artistas franceses fundou sua instituição paradoxalmente anti-institucional, havia um eclipse dos questionamentos aos saberes em voga feitos a partir do próprio campo da ciência. À medida em que autores como Derrida, Deleuze ou Foucault retomam este desbaratamento interno (presente em pensadores que demoliram certezas, de Montaigne e Spinoza a Nietzche e Freud), a ironia torna-se menos necessária. Fica claro como arte e ciência são linguagens que representam os fenômenos a partir de perspectivas próprias. Ou seja, como são visões de mundo que, portanto, precisam ser sempre e reiteradamente questionadas.
Em microscapes, esta desarticulação reaparece na forma de um procedimento que atua no reverso do aspecto menos fértil da etnografia – prática que sugere metodologias de investigação poderosas, a não ser pelo entendimento ingênuo da espessura entre observador e acontecimento. A etnografia, assim como certas metodologias de mapeamento atualmente em voga, é incapaz de reconhecer que olhar para o mundo é sempre recortá-lo, visada provisória e parcial.
Um dos aspectos importantes das tecnologias contemporâneas é justamente oferecer aos sentidos e ao intelecto estes dados de outra forma inacessíveis – seja na ciência engajada no entendimento de partículas infinitesimais, seja na arte que investiga os limiares onde a linguagem expande os limites da percepção. Basta reconhecer que, apesar da potência ampliada a limites nunca antes imaginados, trata-se ainda de navegar por mares cuja amplitude impede compreender senão aspectos do oceano que os abriga.
microscapes situa-se num espaço cuja porosidade reconfigura a fronteira entreaveriguar e representar. Lugar refratário ao entendimento ordinário, limiar difuso que desfoca os contornos (pressupostos) que separam ciência e arte. Mas não se trata exatamente de forjar algo extraordinário, senão de aproximar os sentidos das diferentes substâncias que habitam o cotidiano das cidades, em um mapeamento inusitado que revela aspectos da relação que temos com o mundo ao redor por meio de taxonomias menos óbvias.
A instalação usa um microscópio de laboratório como fonte para captar imagens ampliadas de fuligem, restos de comida, fragmentos de tecido, poeira, enfim, tudo o que suas poderosas lentes sejam capazes de capturar. Ao propor um jogo entre vídeos generativos e lâminas impressas, insufla ordens inesperadas e propõe arranjos imprevistos, reconfigurando a prioridade das coisas ao chamar atenção para o mínimo, o que ele gera, e o que dele vemos a partir de instrumentos que podem ser óticos ou matemáticos.
Mas não é apenas o fluxo entre macro e micro que tornam estes mapeamentos inusitados. Os materiais coletados formam um banco de dados afetado por dados coletados por sensores. Estas informações geram vídeos; são traduzidas em algoritmos que alteram as imagens e produzem sons, numa composição audiovisual cuja intenção não é representar este universo inacessível pela mera ampliação, mas transcriar suas propriedades.
microscapes não se preocupa com oferecer aos olhos e ouvidos do público uma réplica em outra escala dos elementos mínimos de que é composta (o que deslocaria o processo para o campo da ciência com recursos precários para cumprir a tarefa proposta). O projeto pretende, conforme os próprios artistas explicam, explorar a “hibridização de vídeo e áudio, o diálogo entre as escalas de percepção, as explosões de sentidos onde se chocam os sistemas”.