público e privado: discurso e ação em tempos de dissolução de limites

Roda de Conversa @ 28 Patas Furiosas

A cultura e a sociedade atual são marcadas por uma (suposta) ausência de limites, resultado de inúmeros processos cujo objetivo foi desconstruir certas distinções precisas, destas que por muito tempo organizaram comportamentos (em masculino e feminino), linguagens (em ficção e realidade) e esferas da política (em público e privado). Por motivo que, tomara, ficará claro mais adiante, é possível denominar estes limites que não se distinguem pela expressão estranha, mal formulada, sonoramente incomoda, não limitação.

Este indistinto ressoa em muitas coisas que vem acontecendo nas últimas décadas, marcadas por um entendimento menos marcado de questões de raça, gênero, classe, etc. Ainda que isto seja resultado de disputas nunca completamente apaziguadas, de idas e vindas que fazem o mundo girar em falso. O que não deixa de surpreender, afinal sob a ilusão de que os dias seguem adiante, o sol retorna todas manhãs para lembrar que a terra gira em círculos e os homens são arrastados pela força centrípeta destes ciclos pela atração intransponível da gravidade.

Que a contracultura e o pouso na lua sejam da mesma época, só leva a crer que o esforço de descolar deste centro atrator que agarra os corpos à sua superfície dissipa-se de formas insondáveis pelo sonhos que os homens procuram transformar em realidade. E o mundo, de lua, parece que ora quer mudar aos sabor destes sonhos, ora quer conservar as coisas do jeito que estão.

Hoje em dia, os modos de pensar que definem gêneros nítidos (gêneros limitados) não dão mais conta dos diversos agenciamentos das vontades de estar e ser existentes. Algo dos limites que procuram conter as coisas, parece não mais preservarem sua antiga consistência. Muitos aspectos de como se vive agora parecem ilimitados, não se pode mais manter distinções até não muito tempo tidas como estruturantes das coisas. Em certo sentido, aconteceu um esforço para superar a época em que as pessoas eram distintas (em que algumas delas se distinguiam das demais por sexo, raça ou classe). Hoje, grande parte delas são indistintas, mas há uma minoria que se exclui desta indiscernibilidade por causa de uma riqueza concentrada sem precedentes.

O mundo reage de forma violenta ao distinto e ao indistinto. A riqueza concentrada é tão insuportável para a maior indiscernível quanto a crescente ausência de limites é insuportável para estes poucos que regulam o estados das coisas. Esta tensão repete aspectos das reações desproporcionais ao surgimento da Europa moderna, que aconteceram na forma das duas grandes guerras recentes, exemplos de como os homens muitas vezes não conseguem deixar de ser limitados. Nem sempre, nem todos conseguem administrar a rapidez com que o mundo reconfigura seus limites.

Não deixa de ser curioso que este modo de dizer espacial, em que limites assumem o sentido de extensão onde as coisas podem extrapolar ou sucumbir, quando deslocam-se de onde estavam, em certo momento variam de tal forma a serem percebidos como ilimitados. Mas algo parece estar além das atitudes que levam a delinear, ou não, limites.

Quando limita-se a violência por meio das negociações, o ilimitado torna-se indesejável, há uma esperança de que os limites não extrapolem este limiar definido pelo que resultou comum depois de negociado. Quando o que se limita é a liberdade, por meio de cerceamentos, o ilimitado torna-se desejável, há uma utopia de extrapolar os limites e ampliar o escopo que circunscreveu o restrito.

Assim, o que pensar sobre a presença ou a ausência de limites, da nitidez que podem assumir. Se já não é mais suficiente pensar, por exemplo, em gêneros nítidos (limitar masculino e feminino, por exemplo), há algo relativo à esta nitidez que precisa ser considerado. Aqui esta em jogo o escopo do olhar, e não mais a expansão dos espaços e seus modos de definir ou espraiar limites. Gêneros pouco nítidos (no sentido em que se diz que uma fotografia é pouco nítida) atribuem às definições do corpo pela conformação dos órgãos sexuais e seus prolongamentos em exercícios do desejo um aspecto visual que não lhe é próprio. Dá-se a ver de outra forma algo que não se organiza necessariamente por imagens ou, para exagerar na retórica proposta, dá-se o estabelecimento de um jogo de sentido em que algo se borra, na aproximação entre duas palavras relacionadas apesar de seu elo não ser óbvio.

Um exemplo desta multiplicação são os incontáveis modos de representar o corpo performatizados nas ruas, redes, e intersecções entre as duas. As figuras de masculino e feminino tornam-se insuficientes para pensar as heterogeneidades que surgem, inclusive em função de próteses que esticam o entendimento do próprio humano, ora próximo do animal, ora do robótico, em meio a poses estroboscópicas, roupas que não vestem opções e cliques dispersos em nuvens.

Entre parêntesis: é curioso que o termo clique, que surge por causa das máquinas fotográficas com um sentido de disparo em que o fotógrafo grava instantes de luz sobre a película dos negativos, que depois devolverão em formas e texturas algo do que aconteceu diante da câmera ao papel que ele imprime, hoje em dia parece ter invertido o sentido que a operação descrita no início desta frase sugere, na medida em que hoje as pessoas não clicam apenas para capturar algo do mundo para os aparelhos que portam, mas também para enviar algo de si para as redes que estes aparelhos conectam.

Estes processos de não limitação costumam ser vistos com entusiasmo, pelo mencionado entendimento mais inclusivo dos desejos, existentes e por pensar. Levando em conta que a palavra gênero, usada para marcar as posições masculina e feminina nas descrições conservadoras, serve também para nomear os diferentes modos do discurso, não parece descabido relacionar este limite que não se distingue com a menor separação entre os efeitos de realidade e ficção, mistura de gêneros discursivos presente de forma cada vez mais explícita na arte contemporânea.

Primeiro parêntesis não verbal, ou “o documentário é uma ficção sobre a vida dos outros”:
Cindy Sherman / Untitled Film Stills
Nam Golding / Ballad of Sexual Depency
Jack Smith / Flaming Creatures
mouchette.org

Um aspecto desta ausência de limites é a dissolução entre espaços públicos e privados, que começa a circular por meio de palavras como esfera pública (estranho lugar sem a solidez dos espaços geográficos ou construídos, que transfere algo do mundo exterior para a intimidade dos lares) ou simulacro. Dela resulta certa corrosão dos âmbitos do trabalho e do lazer, que devolve à sociedade atual modos de viver de um capitalismo primitivo, desobrigado de contratos visando amparar as pessoas de sua voracidade incontrolável. Neste caso, a não limitação é vista com assombro.

Segundo parêntesis não verbal, ou “incomodada ficava a sua avó”:

Richard Serra / Tilted Arc
Interdição / 3NÓS3
Sentient City Survival Kit / Mark Shepard https://archive.org/details/SentientCitySurvivalKitByMarkShepard
As if it were the last time / subltemob https://www.youtube.com/watch?v=FY6S4GkCZ9c

Parece que a percepção de Joseph Heath, autor de Nation of Rebels. Why Counterculture became Consumer Culture, da transformação das críticas ao capitalismo em nichos de mercado, que leva às pessoas a consumirem até mesmo o dissenso, serve também para pensar este deslizamento das coisas que não tem limite, entre entusiasmo e assombro. De um jeito absurdo, os desejos subversivos parecem se perder no classificatório ao mesmo tempo que as políticas conversadores parecem aceitar, com seus fatos alternativas, uma fluidez que antes era uma marca do experimentalismo na linguagem e no comportamento (mesmo que de um jeito perversamente distorcido). Neste contexto, qual o sentido da dificuldade crescente das pessoas discernirem o uso da mentira como estratégia de uma política tão espetacularizada, que parece não se conter mais com suas antigas estratégias de retórica e/ou manipulação?

Procurando deixar em suspenso entusiasmo e alarme, esta palestra apresenta exemplos, na arte contemporânea, destes limites que não mais se distinguem: entre público e privado, entre masculino e feminino, entre ficção e realismo. Esta suspensão convida a um exercício de exame de perspectivas, deixando de lado a postura limitante, aquela discordância pronta que simplesmente desconsidera o ponto-de-vista do outro, antes mesmo de procurar compreende-lo.

E se o teor classificatório que retorna nos modos de organizar as diferenças do desejo em siglas que não param de se multiplicar forem, no fundo, uma dificuldade de lidar com o que há de mais potente nas performatividades deste heterogêneo, justamente sua inclassificabilidade? Até que ponto o paradoxo chocante dos fatos alternativos, a despeito da vulgarização e do uso deplorável, indicam o surgimento, fora do campo da experimentação, de linguagens desafiadoras das polaridades que aprisionam os gêneros do discurso, na medida que inventam uma fala inclassificável?

Diante deste contexto de sinais trocados, de que forma as linguagens (sonoros, visuais, audiovisuais, performáticas) podem reinventar-se? Onde encontram-se as potências que as permitem devolver, a este contemporâneo (polarizado a despeito das aparências), as sutilezas da não limitação? Como o circuito de espaços não institucionalizados que vem se fortalecendo em São Paulo tem contribuído para pensar estas possibilidades?

Coda:
Laurie Anderson / Clone (trecho de Home of the Brave)
Henry Flint / Creep Theory https://www.reddit.com/r/ForeverAlone/comments/1a3nbe/creep_theory_fa_article_from_1962/
O caso Dora / Dora Longo Bahia
Menstruation Machine / Sputiniko https://www.theguardian.com/artanddesign/video/2011/feb/18/menstruation-machine-video

Neste mundo em que não há mais limites no corpo e no discurso, entre tantos sinais vermelhos que não cessam de irromper a cada notícia, que tal hoje antes de dormir engolirmos a pílula azul e tentar imaginar o que Nietzche pensaria se Trump nomeasse seu departamento de criação de fatos alternativos de potências do falso?