Feixes de Luz e Fachos de Luz

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    marcus bastos
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    No artigo Câmeras Fixas, Ideias Móveis, escrito para livro em preparação por Sergio Basbaum com resultados de seu Grupo de Pesquisa Tecnoestése, aparece a ideia de que a tensão entre claro e escuro permite entender mais aspectos das imagens técnicas do que se imagina. Um exemplo são os termos camera clara e caixa preta. Na forma em que foram discutidos por críticos de imagem como Barthes e Flusser, extrapolam o aparente dualismo entre excesso e falta de luz, e a questão deixa de ser meramente formal ou específica ao contraste. Os modos de produzir imagem a partir do decalque da luz sobre uma superfície, ou da emissão da luz a partir de um dispositivo, constituem uma miríade de possibilidades, que também correspondem às maneiras mais recorrentes de pensar a imagem.

    Mesmo que seu teor redutor tenha sido repetidamente apontado, a divisão entre o entendimento das linguagens técnicas como recorte da realidade, em contraponto ao entendimento delas como materiais da montagem, perdura apesar de reformulações contundentes em outros aspectos da historiografia, da teoria e da crítica (como pode ser percebido em um livro como Introdução às Teorias do Cinema, de Robert Stam, ou nas investidas contra esta lógica dual em vários textos de Arlindo Machado, por exemplo).

    Para simplificar o assunto, nesta palestra vou chamar de feixe de luz e facho de luz estas duas direções de emissão das imagens técnicas — sem entrar em muitos detalhes na forma com eles reverberam em muitas outras dualidades, como narrativo e não-narrativo, figurativo e abstrato, etc, para não desviar o foco do debate em torno dos desafios da exibição de imagem em situações menos favoráveis que as oferecidas por galerias e salas de cinema.

    O feixe é a luz que se propaga na direção do olho. No dicionário, três sentidos da palavra. O primeiro deles, relativo a fenômenos acústicos e eletromagnéticos, é do feixe como “fluxo de ondas em que a energia se propaga ao longo de trajetórias paralelas ou quase paralelas”. O segundo, adotado pela física, é do feixe como “conjunto de partículas em movimento, contidas num pequeno ângulo sólido, ao longo de trajetórias paralelas ou quase paralelas”. O terceiro, da ótica, é do feixe como “conjunto de raios luminosos, contidos num pequeno ângulo sólido, que podem ser paralelos ou quase paralelos”. Este é o tipo de luz emitido por dispositivos como a TV ou os telefones celulares, que são a fonte de luz dirigida ao olhar de que vê a image ou o audiovisual exibido.

    O facho é a luz que se imprime sobre uma superfície, mas neste caso a palavra assume um sentido metafórico (reforçado pelo jogo sonoro que o contraponto com feixe sugere). Para os arquitetos, o facho é um “objeto pintado ou esculpido e frequentemente transformado em padrão decorativo, muito usado na arquitetura neoclássica e eclética”. Mas não é descabido desprezar este sentido mais específico, e considerar que ao contrário do feixe, o facho de luz é todo tipo de imagem que, ao invés de partir de uma fonte luminosa, rebate no suporte que a recebe. Este é o tipo de luz reenviado ao olhar do espectador, nas salas de cinema.

    Este tema, que parece um pouco abstrato diante do contexto proposto de entender os desafios da projeção em ambientes claros, explica os fundamentos mais conceituais por trás do modo como os aparelhos de TV e monitores exibem imagem (pela emissão de sinais luminosos na direção do olho) de forma diferente dos projetores (onde a luz é direcionada para uma superfície que a “imprime”). Ela também explica certas conseqüências da escolha por uma mídia ou outra, que muitas vezes as pessoas constatam sem todavia relaciona-las com este aspecto material mais cru (que certos teóricos chegam a considerar constitutivos dos diferentes tipos de audiovisual).

    Mais do que diferenças tecnológicas, são procedimentos com resultados e possibilidades bem mais distintos do que a aparência de som e imagens em movimento montados em certos encadeamentos sugere. Não por acaso, quando surge, a TV começa a ser usada como forma de difusão audiovisual no espaço público, em bares, salas de espera de consultórios e aeroportos, por exemplo. Isto seria impensável no caso do cinema, e as diferentes situações sugerem tipos completamente diferentes de concentração

    Christine Mello introduz, no livro Extremidades do Vídeo, o momento e as conseqüências de uma destas mudanças de direção no modo de exibir imagem. Referindo-se às diferentes épocas das artes do vídeo, o texto mostra as conseqüências da diferença descrita acima:

    “A partir dos anos 1980, com o acentuado uso do projetor de vídeo (cuja forma de exibição se opõe à do monitor, por não se restringir à caixa de TV, mas se direcionar ao espaço arquitetônico), vimos florecer mais uma, entre as muitas, das formas de desmaterialização da imagem e do som, pelo fato de o vídeo, a partir disso, passar a ser também um problema de luz projetada”. Resumindo o que será a seguir desenvolvido de forma bastante detalhada no livro de Mello, ela considera que os resultados dessa mudança são um entendimento do vídeo como um processo mais aberto e processual: na TV, os filmes e vídeos tem uma duração fixa, e geralmente as pessoas assistem do início ao fim; as imagens projetadas tem um tempo mais dilatado, que pode ser breve e fragmentado ou estendido e coincidente com o tempo dos acontecimentos, e nos dois casos são vistos de forma intermitente.

    Na altura de quando ela conclui esta etapa de sua pesquisa, a principal conseqüência desta mudança identificada foi a presença cada vez mais intensa das projeções no espaço público, no que a autora chamou de poéticas da wired city, uma cidade que além da arquitetura física e da geografia que ocupa, passa a ter elementos em rede distribuídos por telas que mudam completamente de sentido: elas passam a surgir tanto na forma de painéis nas ruas e avenidas, como na forma de dispositivos móveis que circulam com seus usuários.

    No período da tarde, será feita uma apresentação mais didática de exemplos pertinentes ao tema, buscando dar uma certa noção de como os formatos diferentes da projeção vão aparecendo conforme a arte contemporânea se interessa por procedimentos como o cinema expandido, os chamados ambientes (que, apesar de não serem exatamente a mesma coisa acabaram levando às práticas da instalação e da videoinstalação) e as intervenções urbanas (que em certos casos adotaram as mídias e o audiovisual como forma de expansão do acontecimento localizado, e em certos casos passaram a usar difusão de som, intervenção gráfica e fotográfica e projeção de vídeo como recursos do próprio acontecimento).

    Por isso, neste primeiro momento, além de ilustrar a ideia das duas direções de emissão da imagem, o objetivo vai ser por amostra de exemplos apresentar de forma mais ampla estas tendências do uso de som, fotografia e imagem em movimento em situações diferentes das mais convencionas, como as galerias e salas de cinema. Tanto o feixe como o facho de luz remetem a um desejo de aproximação entre e corpo e imagem, que permeia a história das linguagens das mais diferentes formas, seja na busca por formas cada vez mais precisas de representação que levam aos usos de conhecimentos científicos e adoção de dispositivos óticos para produzir imagens de realismo cada vez maior, sejam em recursos mais simbólicos como é o caso do trompe l’oeil, até o momento em que começam a surgir modos de realizar imagens em movimento que efetivamente saem da tela, das longínquas fantasmagorias aos recentes filmes 3-D.

    Também não é o caso de alongar o tema, mas um aspecto central das história da cultura, no intervalo entre o final do século 19 e hoje, é o crescente investimento em modos de envolver o espectador nos mais diferentes tipos de experiência, da música às artes e o cinema, o que leva a uma transformação que aos poucos o deslocado do lugar passivo para um papel participativo, como esta muito bem desenvolvido, por exemplo, no livro Artificial Hells — Participatory Art and The Politics of Spectatorsihp, de Claire Bishop. Este tema também esta desenvolvido de forma bastante ampla no artigo On transmission: bridging the 19th and 21st centuries, ainda inédito.

    Com um pouco da liberdade que as metáforas permitem ao mesmo tempo que ajudam a tangibilizar coisas cuja abstração muitas vezes demanda um apoio didático, é possível tomar duas cenas bastante conhecidas do cinema mais recente como exemplos destas duas direções de aproximação entre corpo e tela. Em Videodrome, de David Crononberg, há um mergulho do corpo na imagem. É como se a tela de TV fosse absorvente, a ponto de sugar a psique humana, pelo intervalo das lineaturas

    Videodrome, de David Cronenberg: a percepção do inconsciente ótico e o teor fantasmático que permeiam o fazer audiovisual desde seus primórdios (quanto tinham uma ligação mais explícita com o sobrenatural), desdobram-se num tipo de pensamento que pretende entender como as imagens afetam o espectador, a ponto de mudar seu funcionamento neurológico; no filme, Cronenberg apresenta um cenário distópico em que o desejo pelo que as imagens expressam podem levar ao delírio e à perda de noção da realidade.

    A Rosa Púrpura do Cairo, de Woody Allen: o personagem que deixa a tela para participar da vida da espectadora assídua trata do feitiço que as imagens produz de modo mais lírico, que evocam as tentativas posteriores ao que ficou conhecido como rompimento da cortina (termo de Gertrude Stein que influenciou o surgimento do teatro pós-dramático) ou quarta parede (na conhecida formulação brechtiana) — mesmo que neste caso a relação seja mais indireta que no exemplo anterior.

    Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick: um terceiro filme permite mostrar o didatismo da divisão proposta; de fato, as idas e vindas da luz entre telas e corpos acontece numa miríade mais complexa de combinações entre a emissão e o reflexo, o que a tortura de Alex demostra na medida em que neste caso a luz irradia da tela para a mente do personagem (mais próxima da direção representada pelo filme de Woody Allen) e modifica seu comportamento (mais próximo da direção representada pelo filme de Cronenberg).

    O tema da eficácia, desenvolvido por Eisenstein de forma reiterada em seus escritos, é provavelmente a reflexão mais sofisticada sobre a questão no escopo de pensamentos sobre audiovisual: em Montage Eisenstein, Aumont apresenta de forma detalhada a maneira como o pensamento do cineasta russo sobre os modos de atração do espectador, partem de uma abordagem pavloviana, mais presa ao aspecto físico dos comandos de luz sobre o corpo, a um entendimento mais complexo da relação entre cinema e funcionamento do cérebro (tema que Deleuze também vai recuperar, dedicando a ele um capítulo inteiro de Cinema 2 — Imagem-Tempo).
    No período da tarde, ao apresentar os exemplos mais ligados ao desmonte físico da configuração de tela e espectador, vou retomar um pouco do problema pelo ângulo da arte em sua passagem do modernismo à contemporaneidade, que é marcada pelo estilhaçamento da tela e progressivo envolvimento do corpo em meio à imagens.

    ………………………..

    Qual o sentido de existirem duas direções da luz, nos dispositivos de exibição de imagem mais comuns? As telas de TV, monitores e telefones celulares enviam a luz para o olho. Os projetores (seja no cinema, em galerias ou no espaço público) enviam a luz na direção de uma superfície que a rebate para o olho? Uma pequena reflexão sobre isto que vou chamar de feixes de luz (luz que se propaga de um dispositivo em direção ao olho) e fachos de luz (luz que rebate em uma superfície, e portanto é “projetada” indiretamente na direção do olho). Será que estas características técnicas tem conseqüências conceituais?

    Há diferença no modo como a fotografia e o vídeo pensam o problema da reprodução da cor? Isto se relaciona às formas de saída utilizadas?

    Os diferentes modos de representação da cor, do contraste, das texturas leva fotógrafos e videoartistas a pensarem de modos invertidos?

    No caso da fotografia, a preocupação é que o dispositivo de saída seja consistente com as informações da imagem enviada. Há uma ênfase na calibragem de monitores e projetores, pelo interesse em garantir a consistência da informação registrada no momento do clique. É um modo de trabalhar que surge no papel (como transferir para o papel, com uma interpretação coerente com o desejo do fotógrafo, aquilo que o negativo registrou?). Acho muito boa essa figura da interpretação usada pelo Musa, pois ao mesmo tempo que ela aponta para um rigor no processamento da imagem, ela derruba a impressão de objetividade do processo. Aliás, Musa, você tem algo publicado a respeito disto? Isso me pareceu uma certa ênfase no seu curso de fotografia digital. Esse modo de trabalhar continua quando a fotografia se torna digital, ou seja, há uma busca para que o resultado impresso seja coerente com o arquivo da imagem.

    No caso do vídeo, o procedimento costuma ser de ajuste do arquivo ao contexto de exibição. É um pena que não teremos alguém para tratar da questão no cinema, tenha a impressão que o cinema ainda mantém a mesma direção da fotografia, ou seja a consistência da saída deve se acomodar à informação existente. Como o sinal eletrônico, e depois o digital, são bem maleáveis, e monitores e projetores surgiram cheios de inconsistências (e mesmo que isso tenha melhorado, hoje a diversidade de modelos acaba resultando numa diversidade de saídas), me parece que o trabalho de vídeo é muitas vezes feito no sentido de ajustar o arquivo à saída, especialmente no caso das projeções em espaço público.

    Ou será que o ajuste de arquivo de vídeo ao contexto é realmente um modo de fazer diferente ou no fundo é a mesma coisa do processo impresso e os ajustes a um papel mais amarelado, por exemplo?

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