Artigo publicado na revista Brasilien, do Instituto Goethe, discute como: “Duas mostras recentes na capital alemã permitem identificar elementos das poéticas contemporâneas que extrapolam seus circuitos mais específicos: Five Minutes of Pure Sculpture, individual de Anthony McCall no Museu Hamburger Bahnhof, e a montagem de Piso, do duo Rejane Cantoni e Leonardo Crescenti, na coletiva Impulso e Movimento, curadoria do Ars Electronica em Berlim”.
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Duas mostras recentes na capital alemã permitem identificar elementos das poéticas contemporâneas que extrapolam seus circuitos mais específicos: Five Minutes of Pure Sculpture, individual de Anthony McCall no Museu Hamburger Bahnhof, e a montagem de Piso, do duo Rejane Cantoni e Leonardo Crescenti, na coletiva Impulso e Movimento, curadoria do Ars Electronica em Berlim.
Ambas as exposições apontam para a dissolução entre a fronteira que supostamente separaria as artes visuais e as poéticas tecnológicas: divisão de resto arbitrária, que adquire maior ou menor nitidez conforme a época e/ou o contexto. Atualmente, o uso intenso de dispositivos em rede torna cotidianos procedimentos que uma geração anterior poderia considerar “objeto de ficção científica”. Um exemplo são as conversas de voz por IP (uma forma que tornou-se popular de telepresença). Conversar com um avatar audiovisual ficou comum a ponto de as pessoas nem perceberem que seu corpo pode afetar dois lugares ao mesmo tempo, com relativa facilidade.
Há momentos em que a tecnologia muda de forma radical a percepção sobre o mundo ao redor, como Marshall McLuhan considera ter acontecido com o surgimento do trem. Em O espaço na poesia e na pintura através do ponto-de-fuga, o teórico canadense afirma que a fragmentação de perspectiva na arte moderna não seria possível sem a percepção da velocidade que os novos veículos permitiram, fazendo com que as pessoas, ao olharem pela janela em situações de deslocamento antes incomuns, enxergassem paisagens desconexas.
Algo do tipo aconteceu com o surgimento das formas globais de transmissão — as TVs, em formato unidirecional, e os diferentes tipos de rede, que se tornaram cada vez mais sofisticados a partir do final dos anos 1960. Além de mais complexas, estas tecnologias ficaram cada vez mais integradas, como no exemplo dos aparelhos portáteis que, atualmente, contam com recursos sofisticados de conteúdo audiovisual e conectividade.
A luz como material
Os dois trabalhos acima citados – de McCall e de Cantoni/Crescenti – exploram a luz como material, o que os aproxima do cinema da mesma forma que expande o espaço cinematográfico para além dos domínios da representação e das experiências com a materialidade dos suportes audiovisuais. Além disso, ambos abordam questões de percepção, interação e novas formas visuais. Estas surgem conforme as tecnologias em rede tornam-se cotidianas na sociedade contemporânea. Ao fazê-lo, assumem uma potência singular, conforme manipulam um dos elementos mais etéreos, instáveis, imersivos e mutantes conhecidos pelo homem: a luz. Uma luz que é claridade e calor, e que é vista tanto quanto envolve o corpo. Seus fluxos assumem características as mais distintas, seja ao conduzir imagens de um projetor a uma superfície, ou impulsos de um transmissor a um receptor.
McCall é um pioneiro do chamado cinema expandido, que remodelou de forma sutil mas potente sua pesquisa com volumes de luz, após o surgimento dos projetores digitais que o permitiram criar esculturas horizontais. Sua obra é uma síntese de duas tendências dominantes do cinema experimental (a das formas abstratas de imagem e som, como as Lumias de Thomas Wilfred, e a das projeções espacializadas, como Vortex, organizada por Jordan Belson). Nos dois casos, a linguagem torna-se representante “de uma nova forma de arte em quatro dimensões”, ao emprestar formas tangíveis às articulações entre espaço e tempo, que o corpo passa a perceber por meio de movimentos, vibrações e estímulos sensórios.
Tornando visíveis as relações e os fluxos
Piso, de Rejane Cantoni e Leonardo Crescenti, inverte o procedimento através do qual McCall produz volumes a partir de sequências de luz em movimento. Na instalação dos dois artistas brasileiros, o gesto do corpo sobre uma estrutura de metal dispara uma onda que reflete na parede lateral do trabalho. A obra constrói uma trama de relações em que os corpos em cima e ao redor da escultura cinética geram uma rede de relações perceptíveis, tornando lúdicos e explícitos os fluxos ali compartilhados.
Inserida em uma pesquisa que estimula formas de expansão dos sentidos (especialmente tato e visão), Piso combina qualidades plásticas e sensórias com uma capacidade ímpar de estimular relacionamentos. É uma obra que sintetiza os cruzamentos entre as poéticas tecnológicas e as formas mais amplas de produção contemporânea – uma marca do duo que, com projetos como Infinito ao Cubo, Solar e Solo, tem se destacado por ressignificar de forma sensível questões centrais da atualidade.
Em Solar, as práticas de geolocalização popularizadas por GPSs e mapas online são ponto de partida para uma experiência contundente de posicionamento do corpo — a relação entre o corpo humano e o sol (e, portanto, a referência mais essencial para pensar o lugar do homem no sistema solar). Em Solo, as formas de socialização mediadas por rede ganham novo sentido: o projeto permite às pessoas perceberem qual é seu papel num contexto em que o que um faz modifica o fazer do outro (uma ilustração tangível do que Spinoza descreveu em sua Ética como o poder de afetar e ser afetado marcante nas relações em sociedade).